06 Fev. 2024
Deus, Pátria, Família

Eurico Reis
No tempo do Estado Novo, eram referenciadas por toda a gente duas trilogias importantes, uma, como então se dizia, pelos opositores do Regime, e outra — era assim que essas pessoas se identificavam perante os outros — pelos da então Situação. A primeira era a dos odiosos “três F”, que o eram porque provocavam “a alienação das massas” e desviavam as pessoas do objectivo da defesa dos seus interesses específicos, e que eram indicados por ordem decrescente do grau de animosidade que geravam, a saber: Fátima, Fado e Futebol.
Havia nesta postura uma desajustada radicalidade que gerou vítimas escusadas nos anos subsequentes ao 25 de Abril de 1974. E depois havia a outra, a trilogia de Salazar — Deus, Pátria, Família —, a que esse ditador aludiu num discurso por ele proferido em 1926 e que constitui a súmula do pensamento ideológico dos movimentos políticos e sociais conservadores ditos de expressão cristã: “Não discutimos Deus e a virtude, não discutimos a Pátria e a sua história, não discutimos a Autoridade e o seu prestígio, não discutimos a Família e a sua moral…”.
Infelizmente, esta ideologia retrógrada sobreviveu e, pior do que isso, nos tempos que correm, aqueles que a perfilham perderam a vergonha, quiçá até algum medo, que passaram a sentir na sequência do processo político e social que se desenvolveu em Portugal durante os anos de 1974 a 1976, proclamam, em alta voz e sem qualquer pudor, esses princípios que muitos, ingenuamente, julgavam que estavam já enterrados nos arquivos históricos. E porque não foram devidamente combatidos, estamos agora a sofrer os efeitos nefastos do seu ressurgimento. Enfim, estamos alguns e algumas porque outros estão a sentir-se como se estivessem num paraíso. Para essa gente, Família é só aquela que está descrita nos manuais do Estado Novo e na visão preconceituosa, machista e patriarcal de certos sectores religiosos (de todas as religiões, acrescento — todas elas preconceituosas, machistas e patriarcais — que não apenas da Igreja Católica), sendo que o “pecaminoso” sexo serve só para a procriação, e, para além disso, segundo essas pessoas, quem não consegue ter filhos através desse modo “normal” de procriar, tem de conformar-se com essa pretensa “vontade de Deus” e desistir desse sonho. Sonho que constitui um desígnio perfeitamente válido e, ele sim, normal.
Ter sexo sem finalidade procriativa e procriar sem desenvolver práticas de natureza sexual é, para essa gente, algo muito próximo do diabólico, um verdadeiro pecado. Tristemente, manifestações dessa mentalidade surgem onde menos se espera. E daí o contínuo e inaceitável desinvestimento que tem sido feito nos centros de procriação medicamente assistida inseridos no SNS e a verdadeira tragédia que continua a ser a vida de quem que, nos termos da legislação em vigor, tem direito a aceder à gestação de substituição, direito esse que, por culpa exclusiva do Ministério da Saúde, do Presidente da República e, antes disso, de alguns Juízes que exerceram funções no Tribunal Constitucional, apesar de reconhecido legalmente, não existe, já que não pode ser exercido por falta de regulamentação. O Estado de Direito não é isto.
Este texto de opinião surge da colaboração entre Eurico Reis, Juiz desembargador jubilado e ex-presidente do Conselho Nacional de PMA, e a Associação Portuguesa de Fertilidade.
Jornal de Notícias • 6 Fev. 2024