Ana Kotowicz, jornalista
Ana Kotowicz foi mãe, aos 41 anos, de duas meninas pela via da adoção, caminho que decidiu seguir com o marido depois de um diagnóstico de infertilidade. É jornalista e escreveu dois livros sobre adoção. O primeiro, “Reis Procuram Príncipes”, é uma história infantil que tenta mostrar aos mais novos que as famílias podem nascer de muitas maneiras. O segundo, “Adotar em Portugal, um Guia para Futuros Pais”, procura ajudar outros pais a encontrarem na adoção a família com que sempre sonharam.
Sabíamos que a adoção não podia ser um plano B. Não podia ser um sucedâneo de um filho biológico, um amuleto para chamar a gravidez, uma maternidade de segunda categoria. Tinha de ser tudo.
Foi na véspera de Santo António que o nosso material genético ficou a namorar num prato de laboratório. Vi a data como bom prenúncio. A noite de um santo casamenteiro seria boa para fazer magia e pôr fim à espera de quase dez anos por um filho. Não foi. Os dois embriões que guardei dentro de mim durante vários dias, com medo quase de respirar, não fosse o meu fôlego roubar-lhes a hipótese de se tornarem vida, nunca se transformaram em gravidez, muito menos em crianças de carne e osso. Valeram-me muitas lágrimas, mas foi o momento de viragem na nossa história, absolutamente necessário para tudo o que veio a seguir. E para o desejado final feliz.
Até aquele momento, o meu mantra fora sempre o mesmo: não queria filhos feitos num laboratório. Chamem-lhe embirração, superstição, ou simples teimosia. Nada tinha contra quem o fazia, mas sentia que não era esse o meu caminho. Intuía que ao tentar fintar o destino a decisão me poderia trazer mais tristeza do que alegria. E recusava tentar saber por que é que a gravidez não acontecia: não queria que um absurdo sentimento de culpa contaminasse a nossa relação e a consumisse. Ignorância é felicidade. E foi. Durante muito tempo.
No meio de tantas certezas que tinha, alguma coisa cedeu. Ainda hoje não consigo dizer exatamente qual foi o ponto de viragem: a idade terá pesado — ninguém fica mais novo — e já não encontrava conforto na ideia de que tinha muito tempo para engravidar. Não tinha. O tempo chegava ao fim (se é que não tinha já acabado) e a fábrica de óvulos poderia ter fechado para sempre. Para não ter arrependimentos, entreguei a minha última esperança a uma placa de Petri. Fui uma boa paciente. Fiz tudo o que me foi receitado, acreditando que se seguisse a prescrição à risca finalmente seríamos pais. Não fomos.
Quando a gravidez não aconteceu, as palavras do homem de bata branca pareciam cimentar aquilo em que sempre acreditara. Havia uma incompatibilidade genética, a probabilidade de gravidez era mínima e, mesmo que essa acontecesse, o mais natural era que o corpo acabasse por rejeitar o que resultasse da nossa fusão. Dificilmente haveria um nascimento, dificilmente haveria uma criança saudável. Foi o que bastou para fechar aquela porta.
Aquele assunto estava encerrado. A gravidez era chutada para fora da nossa vida para nunca mais voltar. A ideia de ter de interromper uma gravidez a meio ou de ver morrer um filho pouco depois de ele nascer era insuportável. E foi assim, e só assim, que conseguimos fazer o luto do filho que nunca veríamos nascer. Se não tivéssemos seguido aquele caminho, o que nos escreveu o ponto final, talvez ainda hoje andasse a sonhar com o nascimento de um filho.
Dizer adeus à gravidez não queria dizer desistir da parentalidade. Foi quando começámos a falar de adoção. Sabíamos que não podia ser um plano B. Não podia ser um sucedâneo de um filho biológico, um amuleto para chamar a gravidez (como alguns chegaram a sugerir), uma maternidade de segunda categoria. Tinha de ser tudo.
Foram dias longos. Muitos medos, poucas certezas. Temíamos uma genética que não era a nossa — embora, como se vê, a nossa estivesse longe de ser perfeita. Receávamos que o amor não nascesse, que os nossos filhos viessem a ser vítimas de preconceito, que a família biológica nos descobrisse e perseguisse, que a adolescência se tornasse impossível e, claro, o maior de todos os terrores, que a criança uma noite se revelasse psicopata e nos assassinasse durante o sono. Medos genuínos — que hoje nos fazem rir por parecerem disparatados — sobre os quais falámos, até os dissipar, um a um. E quando aquele céu deixou de ter nuvens negras, demos início ao processo.
Foi na véspera de Santo António que entregámos os papéis da nossa candidatura. De novo, vi a data como bom prenúncio e pensei que não há coincidências. A noite de um santo casamenteiro seria boa para fazer magia e pôr fim à espera de quase doze anos por um filho. Foi. Duas filhas de uma só vez, com 4 e 5 anos. Três anos depois, o final feliz a quatro mãos continua a ser escrito todos os dias, muitas vezes por linhas tortas. E isso, sei hoje, chama-se ser uma família.