Mariana Veloso Martins*
“Quando for grande quero recorrer à doação de gâmetas para ser mãe/pai” – pensou ninguém jamais. Já não chegava a constante desilusão com a chegada das menstruações, a consulta que era só para ficar descansado que afinal se havia tornado numa série de potenciais problemas depois de exames indizíveis, os vários ciclos de tratamento e as parcas hipóteses de sucesso, e em muitos casos uma ou mais perdas gestacionais. A montanha-russa é das metáforas mais comummente utilizadas para caracterizar a vulnerabilidade e emoções associadas aos tratamentos, mas na verdade há muitas opções neste parque de diversões (perdoem-me a ironia) com rifas para a parentalidade.
A consideração de técnicas de PMA com recurso a doação deve ter lugar quando o prognóstico é ou começa a ser mais desfavorável do que o desejado. É importante que o recurso a doação seja considerado desde logo por estes casais não só porque a probabilidade de sucesso com esta técnica é bastante maior, mas também pelo papel da idade feminina. Assumindo a mesma medicação e a mesma técnica, a probabilidade de levar uma gravidez a bom porto com recurso a doação é 26% superior à probabilidade de um nado vivo com os próprios gâmetas. Se tomarmos em consideração um exemplo de uma mulher de 40 anos com altura e peso médio portugueses, a probabilidade de sucesso num ciclo de FIV é de 23% contra 55% se recorrer à doação de ovócitos (sem diagnóstico conhecido). Se esta mulher tivesse 35 anos, os números seriam 41% vs. 56%.
Estima-se que casais com mulheres acima dos 40 anos procuram tratamentos de fertilidade aproximadamente seis vezes mais do que os casais com uma idade feminina inferior. Embora haja hoje uma forte preocupação com o possível sobretratamento de casais com bom prognóstico, falta-nos uma preocupação com o conhecimento e a tomada de decisão dos casais com baixas probabilidades de sucesso. Não há qualquer recomendação em relação àquilo que seria um número razoável de ciclos com gâmetas próprios antes de partir para a doação nestes casos
Para além do custo financeiro, o custo emocional e o cansaço associado a estes processos pode ser tremendo. A necessidade de comtemplar esta hipótese atempadamente está também ligada ao fato de um em cada quatro casais desistir do processo precocemente, sendo uma das razões principais o fardo emocional. Com a crescente oferta e de técnicas ligadas à genética não é fácil tomar esta opção. O constante avanço científico faz-nos acreditar que pode não ser um processo simples, mas o sucesso é garantido. Esta dificuldade reside não apenas no casal, mas também nos profissionais de saúde que os acompanham: as grandes esperanças e as expetativas muitas vezes irrealistas cabem a todos. É sabido que os pacientes (em geral e não só no campo da medicina reprodutiva) tendem a sobrestimar a probabilidade de sucesso dos seus tratamentos e têm uma confiança excessiva no desfecho.
A preocupação de qualquer paciente que recorre à doação de gâmetas prende-se obviamente com a importância da genética. O debate entre natureza e criação (nature vs nurture) vigora há quase uma centena de anos, e ainda existem vários mitos e controvérsias associados. Em 1920, a introdução do behaviorismo iniciou o debate depois de 50 anos de Darwinismo. Os anos 30 e 40 trouxeram de volta uma fortíssima crença na importância da genética, que culminou com a Segunda Guerra Mundial. A teoria da aprendizagem social nos anos 50 voltou a enfatizar o poder do ambiente. Desde os anos 80 que sabemos não haver vencedor e cada vez mais percebemos que existe uma interação.
A razão pela qual não é obvio que os dadores sejam rastreados por testes de personalidade para lá da entrevista clínica, reside no fato de, apesar da heritabilidade poder explicar a variação entre alguns traços, não explicar a causalidade. Uma característica com baixa heritabilidade pode sofrer influencia genética, assim como a baixa heritabilidade de uma característica é maleável ambientalmente. Tomemos a altura, característica com 90% de heritabilidade. Há um exemplo conhecido que envolve uma aldeia de um país subdesenvolvido onde os homens eram em média significativamente mais baixos que a restante população do país, e a heritabilidade observada mantinha-se nos 90%. Com a introdução do saneamento e maior diversidade nutricional, a altura das gerações seguintes aumentou. Outro exemplo comum da natureza é a pilosela: plantadas sementes idênticas, a flor cresce mais espessa em habitats rochosos, mais adelgaçada em habitats arenosos.
Do mesmo modo, também as experiências ambientais não conseguem explicar a causalidade, sendo até que estas são únicas para cada indivíduo. O exemplo mais óbvio são os irmãos, que podem ter personalidades muito diferentes apesar da proveniência genética idêntica e da partilha do mesmo ambiente. O ambiente que rodeia o primeiro filho pode ser diferente daquele onde o segundo se insere (por ex. pela diferenciação que os próprios pais vão fazendo), e o modo como cada um atribui importância às experiências e à influência que estas podem ter é também diferente. Embora a heritabilidade dos traços de personalidade geralmente ronde valores entre 30 e 50%, há forte evidência de que o ambiente e as experiências influenciam a expressão dessa mesma personalidade. Sabe-se também que, ao passo que heritabilidade decresce ao longo do ciclo de vida de uma pessoa, a continuidade da influência ambiental aumenta. A sociabilização da personalidade é talvez o maior contributo ativo que podemos deixar aos nossos filhos. Por vezes, embrenhados num processo em que parece que progressivamente vamos perdendo o controlo das nossas vidas, podemo-nos esquecer da importância que isso tem.
O sentido de incontrolabilidade acompanha toda a parentalidade, e isso remete-nos para uma das questões mais recorrentes – de que forma é que o recurso à doação afetará a relação entre pai/mãe e filho? Atualmente sabemos que tanto as crianças concebidas por recurso à doação, desde a primeira infância à adolescência, como os seus pais são psicologicamente bem ajustados e não diferem de famílias que tiveram filhos através da conceção espontânea ou com recurso a tratamentos com os próprios gâmetas. Também no que diz respeito à qualidade da relação mãe-bebé não há diferenças. Curiosamente, após o nascimento dos filhos a ansiedade associada à falta de uma conexão biológica diminui nos pais que não a têm, e a confiança na socialização aumenta.
O conhecimento acerca do modo de conceção não parece afetar significativamente as crianças, e a maioria dos adolescentes reporta alguma indiferença. Parece haver evidência de que as crianças a quem é revelada a utilização de gâmetas doados antes dos 7 anos de idade têm um maior ajustamento psicológico e maior qualidade de relações familiares do que aquelas a quem é contado depois desta idade, sendo que a investigação neste campo ainda é escassa. Uma edição anterior desta revista (+Fertilidade Magazine) já se debruçou sobre a importância de revelar aos filhos atempadamente e não manter segredo sobre a doação.
No cenário atual o anonimato na doação de gâmetas é impossível de garantir devido aos testes de DNA de venda direta ao consumidor. Isto independentemente da lei que vigore, embora mudanças nos quadros legais que estejam a tomar lugar por todo o mundo, incluindo Portugal. É importante ressalvar que não há diferenças entre os adolescentes a quem foi ocultado o modo de conceção e aqueles a quem foi revelado. Existem, no entanto, vários casos de adolescentes e jovens adultos cuja descoberta é sem dúvida perturbadora, sendo que facilmente se imagina o abalo que uma surpresa deste género poderá ter na relação de confiança com os pais.
A relação de casal também parece não ser afetada por esta opção, já que se sabe que o risco de rutura da relação não difere entre casais que recorram à doação e casais que conceberam espontaneamente.
Note-se, no entanto, que apesar de o risco de divórcio não ser superior em casais que recorrem a tratamentos de fertilidade quando comparados com aqueles que não tiveram que o fazer, a probabilidade é maior para os casais que não têm filhos, independentemente de terem tido tratamento ou não. Para além da relação, também a saúde mental é afetada quando o desejo de parentalidade permanece (mesmo que já se tenha outros filhos). Ademais, esta influência subsiste a longo prazo – dados recentes apontam para o fato de a prevalência de condições como a depressão, 20 anos depois de realizados tratamentos de fertilidade, ser maior nas mulheres cujos ciclos não foram bem-sucedidos. Posto isto, a ênfase deve ser colocada em alcançar a família desejada. Tanto os pacientes como os profissionais de saúde que os acompanham devem saber qual é o desfecho ideal para o seu caso. Ou seja, desde o início, o plano de tratamentos de um casal que apenas ponderam ter um filho genético deve ser diferente do plano que se elabora com um casal que considera alcançar a parentalidade de mais que uma forma. Ambas as opções são legítimas e evidentemente as fronteiras entre elas são fluídas, e por isso sentindo que é necessária mais informação deve-se recorrer a um apoio especializado.
O aconselhamento psicossocial é recomendado para todas as pessoas que recorrem à doação de gâmetas, mas deveria ocorrer antes no caso dos casais com baixo prognóstico, incluindo idade feminina avançada. Fala-se na necessidade de fazer o luto do filho biológico antes de partir para a doação. É um conceito que me parece emaranhado e difícil de delimitar por vários motivos. Desde logo, a verdade é que há uma antecipação desse luto que começou lá atrás, por exemplo ao segundo ou terceiro teste de gravidez negativo, ou ao ter acesso ao resultado do espermograma e perceber que iria de fato ser mais difícil do que aquilo que se pensava. Em segundo lugar, não há propriamente um desfecho relativamente a essa perda se ainda há opções viáveis para realizarmos a parentalidade. E isto leva-nos a outra questão que se prende com o fato de, quando consideramos um casal, estarmos na grande maioria das vezes a considerar apenas um membro e como tal deixa de haver uma perspetiva de família. Finalmente, coloca-se a ênfase demasiado na genética e não na socialização no que diz respeito à parentalidade.
Deve ser dada a opção aos pacientes de poderem explorar as suas crenças e partilhar os seus medos relativamente à doação de forma atempada. Para além do aconselhamento, a chave deste tipo de processos é a transparência de informação na relação com os profissionais. Idealmente haverá uma discussão personalizada e realista das opções para cada caso, com as correspondentes taxas de sucesso. Não sendo a medicina da reprodução diferente de tantos outros contextos onde há mais que uma opção, as regras da tomada de decisão partilhada em contextos de saúde são aplicáveis. Em qualquer etapa no acompanhamento, o paciente pode perguntar-se:
Sei quais são as minhas opções relativamente ao tipo de tratamentos disponíveis para o meu caso?
Sei quais são os pros e contras de cada uma dessas opções?
Sei como procurar apoio para tomar uma decisão se precisar?
Evidentemente, a resposta deve ser sempre afirmativa.
Escrevo estas linhas na mesma semana em que foram publicadas várias notícias sobre a imensa lista de espera dos pacientes que frequentam os centros públicos para o recurso à doação. Como se já não bastasse a injustiça da biologia que não anda a par dos tempos modernos, aliada à injustiça associada à recente legislação ainda sem resolução definitiva em alguns pontos.
A falta de gâmetas doados para corresponder às necessidades é um problema em muitos países, mas não pode ser desculpa para não se considerar a opção oportunamente. A educação é fundamental não só para ajudar os pacientes a tomar decisões mais informadas, mas também para a angariação de dadores. A APFertilidade e a Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução começaram também a abrir caminho neste sentido, e quero crer que numa sociedade há cada vez menos preconceitos em relação à diversidade no que diz respeito à constituição das famílias, também os associados à importância da genética diminuirão.
*Psicóloga clínica, docente e investigadora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Texto publicado originalmente na edição nº 4 da revista da APFertilidade, de Setembro de 2019