Artigo de Opinião

06 Mar. 2024

Gestação de Substituição, a saga continua!

Alexandra Sapateiro

Na sequência da lei da Gestação de Substituição aprovada em janeiro de 2022, o Conselho de Ministros aprovou a regulamentação do regime jurídico em novembro de 2023. A tão esperada regulamentação (decreto-lei) da lei, que deveria criar as condições plenas do regime da Gestação de Substituição foi, no entanto, vetada em janeiro pelo Presidente da República, que devolveu o diploma ao Governo.

Através do seu veto, o Presidente da República reforça a necessidade de audição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) e do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) sobre a versão final da regulamentação, sublinhando que “os pareceres emitidos pelas referidas entidades expressam frontal oposição à proposta de diploma em apreço”. Vai ainda mais longe ao afirmar que é necessário proceder à clarificação de conceitos contidos na lei e respetiva regulamentação, reforça a inexistência de meios humanos e logísticos e “a desadequação das condições materiais e procedimentos que devem acompanhar os respetivos processos” (fonte do site oficial da Presidência).

Na verdade, as mencionadas entidades emitiram pareceres quando chamadas a pronunciarem-se sobre a proposta de regulamentação apresentada pelo Governo, no entanto, evidenciaram desconhecer o conteúdo final da regulamentação vetada pelo Presidente da República, de acordo com declarações públicas das presidentes da CNPMA e da CNECV.

Ao que tudo indica, pelas declarações de fundamentação de veto, os pareceres destas entidades poderão não ter sido acolhidos no último projeto de regulamentação. Estes pareceres tinham na sua essência a proteção da criança gerada e a especificação dos direitos e deveres de todos os envolvidos no processo, assim como não era específico na forma de resolução de conflitos emergentes do processo.

Deste modo, fica clara a fragilidade do tema em questão, assim como a incapacidade do Governo, pelo menos num primeiro momento de tentativa de regulamentação, ouvir as várias entidades competentes nesta temática e levar em consideração os seus vários pareceres. O processo legislativo, seja ele qual for, deve avaliar pareceres das entidades e/ou pessoas competentes nas áreas específicas a regulamentar. Uma lei sem a regulamentação necessária é inaplicável.

A verdade é que depois de reunidas as condições legislativas necessárias à efetiva aplicação da lei, são essas entidades e pessoas competentes que vão permitir a concretização das regras em sociedade.

No caso concreto, desde a criação da lei que todas as entidades envolvidas no processo da Gestação de Substituição apontam a impossibilidade de aplicação efetiva da mesma por falta de capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde, falta de recursos humanos e meios técnicos.

Com a concretização da regulamentação vamos iniciar outra caminhada no “túnel da esperança” – a concretização do sonho! A discussão em torno da regulamentação necessária para a afetiva aplicação da lei é apenas mais um passo para iniciarmos em Portugal o tão esperado procedimento de Gestação de Substituição.

Acreditamos que após o veto do Presidente da República possa existir uma dedicação mais profunda de todos os envolvidos no processo legislativo, tendo em vista a conclusão da regulamentação necessária para a aplicação da lei. Mas não podemos ter a ilusão de que seja de aplicação imediata a concretização dos procedimentos.

Vamos iniciar outra etapa. A etapa da metodologia que vai permitir que os destinatários da lei possam dela beneficiar. Para que tal seja possível é necessária a criação de todas as condições técnicas e humanas, esforço que terá de envolver todas as entidades já mencionadas e muitas outras. O Serviço Nacional de Saúde vai ter de se capacitar para dar resposta aos procedimentos, por exemplo através da disponibilização de clínicos e técnicos capazes de acompanhar todo o procedimento junto dos interessados, e posteriormente da criança gerada no âmbito da Gestação de Substituição. É necessário capacitar juristas, através de instruções técnicas, para concretizar os contratos necessários ao início dos procedimentos, assim como todo o seu acompanhamento e resolução de litígios que destes venham a decorrer. Estamos a lidar com vidas humanas.

As dificuldades desta possibilidade são inúmeras e crescentes. Veja-se, a título de exemplo, que após a aprovação da lei da Gestação de Substituição, recorde-se, criada especificamente para os casos tipificados na lei, de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez, surge uma grande temática de discussão relacionada com a possível vertente discriminatória da lei em relação a casais homossexuais masculinos. Temática essa que ainda vai gerar muita discussão.

O procedimento prático posterior à existência de regulamentação é a grande preocupação para tornar a Gestação de Substituição uma realidade para quem tanto a deseja e aspira. Os esforços têm de se unir neste sentido.

Também é competência do Governo, ao regulamentar, ter em consideração tudo o que vai ser necessário, e criar as condições para a concreta aplicação da lei na sociedade, em benefício da população.

Voltámos ao ponto de partida? Não necessariamente! O veto do Presidente da República é revelador de que a regulamentação da lei da Gestação de Substituição tem de conter todos os elementos necessários a efetiva e concreta aplicação da lei no sistema jurídico português, ou seja, as regras e procedimentos têm de estar bem definidos para que, finalmente, se consiga usufruir desta possibilidade em Portugal.

É preciso clarificar tudo o que respeita à prática, todos os procedimentos, e como tudo vai acontecer. Quem vão ser as entidades e organismos envolvidos no processo, onde vai ser possível fazer o procedimento, e quem são os especialistas de saúde que vão fazer parte deste processo. Tudo! Tudo tem de estar devidamente definido e concretizado.

Parece que o caminho já se encontra trilhado, mas, neste momento, o Governo, em conjunto com as entidades envolvidas no processo, tem de concretizar a aplicação da lei através do aperfeiçoamento da regulamentação e posteriormente criar as condições técnicas e humanas para que o “milagre” aconteça.

Ultrapassado que se encontra o caminho da criação da LEI, continuamos no túnel da REGULAMENTAÇÃO. O caminho que cria as condições para que a Gestação de Substituição seja uma realidade. A audição das comissões nomeadas para as questões regulamentares é indispensável. A união de esforços fundamental para que no terreno, depois, as leis se possam concretizar na vida das pessoas.

A saga continua!

Este texto de opinião surge da colaboração entre Alexandra Sapateiro, advogada, e a Associação Portuguesa de Fertilidade.

Jornal de Notícias • 6 Mar. 2024
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