Sónia Vieira
Aqui estou, uma mulher como milhares de outras a trazer no coração desde pequenina, o sonho de ser mãe!
Chamo-me Sónia Vieira, tenho 42 anos, acabados de fazer, e se por um lado sou muito grata por todas as voltas ao Sol que dei, por outro, é como se cada aniversário seja um “contrarrelógio” a lembrar-me que o meu “prazo de validade” para poder gerar o meu filho, está a terminar…
A infertilidade tornou-se ela própria, quase um membro da família, que exige paciência, dedicação, educação, investimento a todos os níveis e principalmente muito Amor!
Conheci o Carlos em 2008 e o sonho que já vivia em cada um de nós, passou a ser um só quando nos apaixonámos. Durante dois anos tentámos ser pais naturalmente, sem sucesso, nesses dois anos ficámos noivos, mudámos de emprego e preparámos com muita alegria o nosso casamento. Tínhamos a convicção que eu teria de ajustar o meu vestido de noiva, que casaríamos grávidos, mas não. Conversámos e decidimos que se não acontecesse até voltarmos da lua de mel, que procuraríamos ajuda médica, para tentarmos perceber o que estava a impedir. Não aconteceu e marcámos consulta de planeamento familiar com o nosso médico de família. No processo de fazer análises e exames, esperar pelos resultados, tentámos o coito programado, o completo “anti-romance”, que também não surtiu qualquer efeito, para além de nos fazer sentir mecânicos.
Os resultados chegaram e na altura, para além da anemia que me acompanhava desde que comecei a menstruar (herança genética) e miomas minúsculos nas paredes externas do útero (que segundo o nosso médico, não eram impeditivos de uma gravidez), nada mais se apresentava. Mas os resultados do espermograma não eram animadores e a confirmação que para sermos pais, teríamos de recorrer à PMA (Procriação Medicamente Assistida), caiu como um raio na nossa vida, foi como se nos dissessem – “Esta é a Infertilidade e vai passar a viver convosco!…” A partir daí, o nosso médico informou-nos que teríamos de fazer mais alguns exames e numa tentativa de agilizar o processo, encaminhou-nos para o hospital de Cascais, onde o nosso processo foi literalmente empatado, exames e consultas constantemente desmarcados e remarcados meses depois por não comparência dos profissionais…
Quase 3 anos nesta situação, por fim, tudo o que o nosso médico de família nos tinha informado foi o que se confirmou. Como o hospital de Cascais não tinha departamento de PMA, a médica deu-nos duas hipóteses: enviar o nosso processo para um centro público em Lisboa, cujas listas de espera para a primeira consulta eram de dois a três anos; ou encaminhar-nos para o Hospital Pêro da Covilhã, onde a lista de espera para a primeira consulta seria bem menor…. Escolhemos a segunda hipótese, que ficava a cerca de 300 kms da nossa residência.
Em cerca de três a quatro meses chegou a tão esperada consulta, a viagem da esperança, com destino a uma solução. Foi assim, com esse pensamento, que a fizemos, a imaginar o nosso futuro, mas logo que chegámos, a enfermeira que nos recebeu deu-nos um banho de pessimismo, a falar de quão caros seriam os medicamentos, mesmo com comparticipação do SNS, da quantidade de pessoas que tentavam e não conseguiam, etc., etc…
Não me vou esquecer do silêncio na sala de espera, dos rostos tristes e de um casal que chegou depois de nós, também encaminhados do Hospital de Cascais… Na consulta, tudo certo, um médico muito atencioso e simpático, reforçou a informação de que o nosso caso realmente necessitava de técnicas de PMA, mas não era considerado grave. Então, o médico disse-nos que tinha uma má notícia para nos dar, éramos considerados muito jovens (eu perto dos 33 anos e o meu marido com 34 e, portanto, ficaríamos no fim da lista de espera, por tempo indeterminado. Quando perguntei como assim, se seriam 1, 2 ou 3 anos, o médico disse que não podia responder, que não sabia, que podíamos nunca vir a ser chamados, porque tinham de dar prioridade a casais no limiar da idade máxima permitida (40) e a casos de comprometimento da fertilidade por doenças graves.
Não será difícil imaginar que saímos de lá completamente destroçados, se para lá a viagem foi com os corações repletos de elevada esperança, o regresso a casa foi em lágrimas, em choque, em revolta e já a pensar em outras alternativas. Na altura, a situação económica do nosso país não era nada animadora, os nossos ordenados não comportavam os custos altíssimos dos tratamentos no privado. Falei com uma tia minha, a quem serei sempre grata e cerca de dois meses e meio depois, metemos literalmente o nosso sonho na mala e emigrámos! Pedir crédito estava fora de questão, até porque, na infertilidade, é impossível prever o investimento que necessitaremos na totalidade. Por outro lado, amealhar uma quantia razoável demoraria anos e o tempo nestes casos é nosso completo inimigo.
Não era um adeus, era um até já!
Fomos sem promessas de nada, mas com a certeza do que queríamos e por que íamos e que valeria a pena. O “e se?” não faz parte do nosso vocabulário, não somos conformistas, nem conformados.
Apesar de muitos desafios, conseguimos trabalho, depois alugar um apartamento e nos estabelecermos, mas quando tudo se começava a vislumbrar positivamente, uma série de acontecimentos, entre eles a perda de entes queridos e a falta de honestidade do patrão do meu marido, abalou tanto a nossa vida, que com tudo o que tivemos de lidar, acabei por sofrer uma paralisia facial (Paralisia de Bell). Fiquei com metade do rosto completamente paralisado e tive de ser submetida a tratamentos com corticosteroides, de conseguir recuperar a nível físico e emocional, num total de um ano de recuperação.
Assim que tudo acalmou, procurámos um centro de PMA, mais uma série de exames, repetição de outros e, desta vez, eu tinha os valores da tiroide desregulados. Fiz tratamento durante um ano e antes do final do mesmo, o especialista em PMA que nos acompanhava informou-nos que poderíamos avançar para uma IIU (Inseminação Artificial/Inseminação Intrauterina). Fomos literalmente burlados, viemos a descobri-lo posteriormente por outros especialistas colegas dele, que nem era o tratamento ideal para o nosso caso, que as taxas de sucesso eram baixíssimas e, pior, que o procedimento foi antes do aval do meu endocrinologista…. Perdemos tempo, muito dinheiro e a minha saúde foi negligenciada.
Arrasados uma vez mais, chorámos o que tínhamos para chorar, reerguemo-nos e partimos para o plano C. No país onde estávamos, os valores dos tratamentos eram ainda mais insustentáveis e nem comparticipação nos medicamentos, exames e análises tínhamos. Procurámos alternativas. A Polónia era o país com preços mais acessíveis, depois Portugal e depois Espanha e por ironia do destino, voltámos a procurar ajuda no nosso país, desta vez no privado, no maior e na altura considerado o melhor grupo de clínicas de reprodução humana em Portugal e no mundo… Uma fábrica onde somos tratados como um número de contribuinte e estatístico, exceto por alguns excelentes seres humanos e profissionais que tivemos o privilégio de lá conhecer e que nos acolheram.
Uma FIV (Fertilização In Vitro) com recurso a ICSI (Microinjecção Intracitoplasmática de Espermatozóide), baixa reserva ovariana, 10 folículos puncionados, 9 fecundados, 6 com boa evolução e desenvolvimento até ao D5 (5º Dia), ótima qualidade celular, 4 Transferências Embrionárias no total, uma Transferência a Fresco e 3 TEC (Transferência de Embriões Criopreservados), duas tentativas sem qualquer sucesso, um positivo de teste de farmácia seguido dias depois de Beta HCG negativo e na última transferência, do último embrião, perto dos 41 anos, o primeiro Beta HCG Positivo, seguido de aborto espontâneo… Foi o maior impacto que sentimos em toda a nossa jornada, foi num momento uma felicidade inexplicável para no outro a seguir ficarmos sem chão… Ficámos sem embriões, a sentirmo-nos perdidos, como se voltássemos ao ponto zero… E agora? Agora, vem o plano D.
Chegámos a Portugal em Dezembro de 2018, a pensar que eu ficaria por uns 4 a 5 meses, que correria tudo bem à primeira, desta vez o dinheiro não seria um entrave… inocentes… mais uma vez a infertilidade a dizer que não controlamos nada… São já quase 4 anos… desgaste físico, psicológico, emocional, financeiro, amor vivido entre telefonemas, videochamadas, viagens do meu marido para cá e muitas saudades, outros sonhos em “stand by”, uma pandemia pelo meio… ao longo do processo, suporte e amor de poucos… falta de empatia e incompreensão de muitos, com conselhos ignorantes e cansativos para irmos de férias, relaxar, deixar de pensar que acontecia, adotar, desistir e afins… Nunca é por mal, queremos acreditar que não, mas vêm de quem felizmente nunca passou pelo mesmo, nem entende patavina do assunto. Só posso imaginar por exemplo, o que alguém sem ovários, ou sem trompas ou sem útero sentirá ao ouvir “dicas” destas!?
Depois de perdermos o nosso último embrião, pedimos um tempo à médica que nos seguia e ela largou-nos a mão… a bendita fábrica… demasiados pacientes, agendas demasiado preenchidas, não acontece só nos centros públicos, no privado também há falta de tempo para investigar cada caso com a dedicação e particularidade que cada um exige pelos diversos fatores e diagnósticos associados à sua infertilidade.
Sempre tivemos Fé, acreditamos em Deus independentemente de nomes que lhe atribuem, de crenças religiosas, de religiões. Apareceu no nosso caminho, uma mulher incrível, a Margarida Formosinho, curiosamente filha de um obstetra consagrado em Portugal, que insistiu que falasse com um médico muito especial e da sua total confiança e assim o fizemos, não nos prometeu nada, além de dar o seu melhor e lutar connosco lado a lado, que nos disse que não descansaria enquanto não tivéssemos o nosso filho ou filhos nos braços. Ao extraordinário ser humano e brilhante profissional Dr, José Luís Metello a nossa gratidão infinita, quando o conhecemos desabei em prantos, um alívio, foi como encontrar um porto seguro, foi como se finalmente pudesse descansar e entregar o leme da nossa infertilidade a quem sabe comandar este navio!
Os nossos recursos financeiros tinham esgotado na última TEC e na nossa vida como na de todos os casais que passam por estes processos não temos apenas tratamentos para pagar, as nossas despesas de vida “normal” continuam e aqui estamos a tentar tudo para conseguirmos suportar os custos dos próximos passos do plano D, a desejar que não seja necessário percorrer todo um abecedário para sermos pais.
Ao longo da nossa jornada temos crescido e aprendido imenso, muitas vezes nos sentimos sós, quando procurámos ajuda em 2010, a infertilidade ainda era um enorme Tabu. Tudo o que era falado, discutido e desabafado, acontecia entre quatro paredes, ou em grupos privados de redes sociais na Internet, em Portugal, para além da Associação Portuguesa de Fertilidade, pouco mais havia quem falasse publicamente de infertilidade. Em 2017 decidi criar o início do meu projeto Mãe2bee (o Português na palavra Mãe e a língua universal o Inglês Meant to be – destinado a ser/acontecer), que começou com uma página pública de Facebook, blogue, Instagram, canal de Youtube e que tenciono levar mais longe assim que tiver oportunidade. Quando criei a Mãe2bee disse ao meu marido que, se conseguisse ajudar uma pessoa que fosse, já significava missão cumprida e hoje sinto uma felicidade imensa porque já ajudei mais do que uma, não há nada que pague isso!
Com a Mãe2bee fui trazendo a público testemunhos de quem atravessou as pedras para conseguir ter um filho, sensibilizando para este tema, partilhando informação, apoiando, conhecendo e divulgando estudos, técnicas e profissionais de todo o mundo.
A nossa viagem está ainda a decorrer e talvez por isso, entre vários convites para a contarmos que ficaram esquecidos, o facto de ainda não termos um filho no colo para apresentar ao mundo, ao som de música de piano e ao estilo conto de fadas, talvez fosse o motivo para seremos preteridos. Mas nós e todos os que ainda estão a enfrentar esta batalha merecemos ter voz, merecemos sentir que as nossas histórias incompletas para uns, podem ser motivos de identificação, força e motivação para outros, por isso queremos agradecer à querida e inspiradora Joana Freire, à Associação Portuguesa de Fertilidade, por nos darem esta oportunidade de chegar a essas pessoas!
Não estão sozinhos, não são invisíveis! Por favor, não desistam, independentemente do vosso diagnóstico, das vossas condições, de como podem lutar e chegar aos vossos filhos, façam-no com as “armas/ferramentas” que puderem, atravessem fronteiras se for preciso, tudo vai valer a pena!
Espero também que se deixe de culpar as famílias, sempre com o mesmo discurso e contrainformação, nos meios de comunicação social, de que as pessoas procuram ajuda tardiamente, não é verdade. O nosso caso é um exemplo entre milhares de outros, fomos colocados de parte por sermos muito jovens! A falta de recursos humanos e materiais nos centros públicos é gritante, tanto na área da infertilidade como da Obstetrícia e Neonatologia. É urgente, para ontem, investimento nestas áreas, até porque é de conhecimento geral o envelhecimento da população portuguesa, a baixa natalidade que tem vindo a decrescer cada vez mais, é urgente também a revisão e melhoria das leis de adoção, que necessitam de ser mais céleres e menos burocráticas e tirar da suspensão, as leis de gestação de substituição.
Não é tempo de apontar culpados, descartar responsabilidades uns aos outros, mas será sempre tempo para sermos uns para e pelos outros e juntos procurarmos evoluir!