Plano B – uma vida sem filhos

Sara Serrão

O meu nome é Sara Serrão, tenho 44 anos e a minha vida não foi como eu a imaginei. Quando era mais nova sonhava encontrar o amor de uma vida e constituir uma família num enquadramento saudável e feliz. A verdade é que, depois de um longo namoro entre os 20 e os 30 anos, que acabou por terminar, só voltei a encontrar uma relação estável e gratificante já tarde na vida.

Quando quis engravidar tive que recorrer a tratamentos de procriação medicamente assistida, que fiz, com poucas certezas, mas muitas esperanças, em 2015 e 2016. Depois de três tentativas sem sucesso, com o meu sistema imunitário numa lástima, com o meu estado emocional feito em pedaços e sem probabilidades de engravidar com os meus óvulos devido ao seu envelhecimento natural, não me senti confortável para explorar a possibilidade de recorrer a doação de ovócitos e não voltei a entrar na clínica. Não posso dizer que tenha encerrado este grande tema de vida, mas desde então tenho vindo a fazer uma longa “caminhada”: por um lado, o luto de um sonho que “era suposto” ter-se cumprido, por outro lado, a aceitação de todo o processo. Às vezes tropeço, mas sei que a direcção é sempre em frente e não estou disposta a hipotecar o meu presente e o meu futuro pelo que devia ter sido e não foi.

No início de 2019, um artigo no semanário Expresso sobre as dificuldades de tentar ter filhos depois dos 40 chamou-me a atenção pelo pragmatismo com que abordava o tema, mas desiludiu-me por retratar um caso de sucesso e, como sempre, nenhum de insucesso.

Há muito tempo que sentia que não existe qualquer narrativa na sociedade portuguesa sobre as pessoas que de facto não conseguem ter filhos, pelas mais variadas circunstâncias: para além de razões de saúde e de insucesso nos tratamentos de procriação medicamente assistida, existem também motivos de ordem financeira ou mesmo social – aliás, a dificuldade em encontrar parceiro estável para um projecto de família é tão incontornável hoje em dia que nos países anglófonos já leva o nome de “social infertility”. Neste contexto, contactei a autora do artigo para chamar a atenção para o facto de esta realidade não estar minimamente representada nos media e esse contacto acabou por dar origem a um testemunho na primeira pessoa no jornal Expresso, que foi, passado pouco tempo, tema do programa “O Amor É”, de Inês Menezes e Júlio Machado Vaz, na Antena 1, e de um trabalho do portal Sapo, com as opiniões de uma psicóloga e um médico especialista em infertilidade.

A ideia por detrás destas iniciativas foi não só dar voz e cara a uma situação que existe e que tem permanecido invisível, mas também tentar gerar um movimento de partilha, até aqui inexistente, entre pessoas que quiseram ter filhos e não o conseguiram. O facto de eu própria ter procurado este apoio e de o ter encontrado apenas noutros países, e o facto de ter sido contactada por pessoas com percursos parecidos, que se sentem isoladas, desvalorizadas e invisíveis na sociedade, vieram confirmar a importância de chegar a outras mulheres e homens em idêntica situação. E isso deu-me confiança para lançar recentemente um grupo online de suporte, com o apoio de duas psicólogas. O Plano B – assim se chama o grupo fechado no Facebook – acolhe qualquer pessoa que enfrente a situação de ter querido e planeado ter filhos, sem o ter conseguido, seja qual for a razão.

No arranque do grupo, as três premissas essenciais foram, por um lado, a criação de um ambiente seguro para partilha de emoções, nem sempre positivas, ajudando a minimizar a sensação de isolamento, incompreensão e falta de enquadramento numa sociedade naturalmente focada na descendência e na parentalidade. Por outro lado, tentar cultivar um espírito de “copo meio cheio” em vez de “meio vazio”, valorizando o que se tem em vez do que não se tem. E, por fim, tentar assegurar a continuidade deste “espaço”, pois acredito que a sua existência pode funcionar um pouco como um “seguro” numa condição que se torna crónica: até podemos aprender a viver bem sem filhos, aproveitando outros aspectos da vida, mas o caminho é incerto e ficará sempre um vazio indelével, ao mesmo tempo que haverá momentos difíceis ao longo dos anos. Poder falar disso é uma questão de saúde emocional, mental e física, conforme se conclui pelos testemunhos de outros membros do grupo:

Inês, 42 anos, Sintra
“Tentei pela primeira vez ser mãe aos 35 anos. Muitas consultas, tratamentos, lágrimas, raiva, dor e desilusão depois, 7 anos passados, sei que tenho menopausa precoce. São 7 anos de perguntas, quase sempre para mim e quase sempre ‘porquê, porquê comigo?’. Não conheço pessoalmente alguém que seja infértil. Sempre me senti sozinha, a única pessoa a ser assim. Lia avidamente as reportagens em que uma cara conhecida falava sobre ela (e sobre mim). Neste grupo encontro pessoas a quem não tenho de explicar. Um dos membros do grupo partilhou uma ansiedade que tem sobre a velhice sem filhos e aí senti que finalmente estava no sítio onde não me sinto ‘a única’.”

Paula, 41 anos, Odivelas
“O interesse em integrar este grupo foi a necessidade de conseguir em conjunto com outras pessoas receber apoio e compreensão acerca do sentimento de vazio que se instala ao se tomar consciência que a vida será sem filhos.
A partilha de experiências com o objectivo de ajudar a ultrapassar a dor, baseado na entre ajuda, confidencialidade, confiança, respeito pela história das pessoas que o compõem, não julgando, mas aceitando.
Permitir sentir-me acompanhada e compreendida numa sociedade em que existe uma postura cruel e de total desprezo perante pessoas sem filhos.”

Sofia, 31 anos, Lisboa
“Não estou no ‘Plano B’ por não ter tido filhos – estou porque (muito provavelmente) não os terei. As razões para tal são várias e, juntas, tornam a maternidade, para mim, num sonho praticamente impossível de concretizar. Sendo que desde que me conheço me imagino como mãe, foi bom encontrar este grupo – porque a pouco e pouco o luto terá de ser feito (já está a ser, creio), e é muito diferente passar por esse processo sozinha ou num núcleo em que me entendem e em que as observações despropositadas ficam de fora.
Há uma parte de mim que se vai quebrar para sempre. Uma dor que será para a vida. Porque há em mim uma mãe – que não terá filhos, mas uma mãe.
E no ‘Plano B’ acredito que tudo isto me possa magoar um bocadinho menos.”

Susana, 39 anos, Lisboa
“Sou transplantada renal há quase 14 anos. Há cerca de 5 anos que ando a tentar engravidar e não consegui. O ano passado (2018) foi o “grande ano”, o dos tratamentos… mas também foi o chamado ‘annus horribilis’! Fiz duas FIV no Hospital de Santa Maria, que não resultaram. Como sou transplantada, não me aconselharam a fazer o terceiro tratamento, por receio de pôr em causa a saúde do meu rim transplantado! No segundo tratamento até consegui fazer a transferência de um embrião nível A, com grandes probabilidades de ‘colagem’ no útero, mas isso não aconteceu! Fiquei destroçada porque me senti realmente grávida e fiz tudo o que os médicos me disseram para fazer para que a gravidez fosse adiante!
Considero que um grupo de apoio é extremamente importante para este tipo de casos porque por muito que os psicólogos sejam importantes, não há nada como a experiência e a troca de ideias com pessoas que passaram pelo mesmo ou por algo semelhante.”

Perspectiva das psicólogas que apoiam o grupo, Ana de Sousa Martins e Marta Russo:
“A nossa colaboração no grupo Plano B surge do desejo da Sara de dar voz a todos aqueles que se sentem pouco reconhecidos e que de alguma forma procuram ajuda apenas em privado, ou às vezes nenhuma ajuda. Por acreditar que existem Planos B, que podem ser tão ricos quanto os Planos A, participamos enquanto psicólogas clínicas numa perspectiva de impulsionar e apoiar o grupo, de forma consistente e que permita de facto acolher a perda e reelaboração dos projetos de vida que ficam inacabados”.

No fundo sinto que querer ter filhos e não conseguir resulta numa enorme perda. E, como todas as perdas, dá origem a um luto profundo do qual por vezes nem a própria pessoa se apercebe, quanto mais os que estão à sua volta. Afinal, como explicar e compreender este sofrimento por um filho que não se teve? No final, não é fácil aceitar que a nossa vida, na sua questão mais existencial, não vai ser como sonhámos e que vamos mesmo ter que abraçar uma segunda escolha, um plano b, mas não há por que percorrer este caminho sozinho, entre muros de silêncio.