Quando o Mundo perdeu a cor

Rute Simões

Não posso dizer que, fisicamente, tenha tido uma adolescência fácil. Desde que me lembro, as dores menstruais estiveram sempre presentes, a ocupar grande parte do meu tempo. Claro que, como desde cedo ouves que ter dores faz parte, tentas não dar grande importância a isso, uma vez que é tudo ‘normal’ e que todas as mulheres passam pelo mesmo.

Até as dores serem tantas que não te consegues mexer. Não te consegues levantar da cama ou do chão. E precisas de ser carregada ao colo pelo teu pai até às urgências.

O que é normal? Normal é o que faz parte da tua rotina. É o que acontece constantemente, é o teu dia-a-dia. Se tens dores constantemente, isso acaba por ser normal. Habituas-te a isso, proteges-te da melhor maneira que consegues, adaptas-te. Os teus pais não concordam contigo, por isso levam-te a uma médica. Ela descobre uma “massa” no útero e receita-te dez comprimidos por dia. Isso passa a ser normal. Mas os comprimidos fazem-te sentir ainda pior. Seguem-se dezenas de exames. A rotina muda, mas as dores continuam. As ecografias multiplicam-se e logo isso passa a ser normal para ti. Os diagnósticos diferentes também: e habituas-te a isso. Não saberes o que tens, o que se passa contigo. Durante anos. É normal…

Perdi a conta a quantos médicos fui e a quantos exames fui submetida. Lembro-me de casos isolados, que se destacam pela incompetência: uma médica disse-me que eu tinha dois úteros e um médico para tirar os ovários que não estavam lá a fazer nada. Nesta altura, tenho já 19 anos. E com 19 anos recebo a sentença de que sou infértil.

Nunca tive planos para ser mãe. A ideia de maternidade não fazia parte dos meus sonhos. Ainda assim, fecharem-te uma porta na idade em que as começas a abrir foi devastador. Tanto como os anos sofridos em silêncio, sem saber o que tinha, incapacitada pelas dores, julgando ser mais fraca que as outras pessoas, julgando ser menos.

No meu caso, as dores tornaram impossíveis um dia-a-dia normal, mas o não saber, o não ter um nome para dar ao que sentia, foi o que mais me desgastou. Porque comecei a duvidar de mim própria e das minhas queixas. Quando finalmente me foi diagnosticada uma endometriose, um peso saiu de cima de mim. Não estava a imaginar. Não me queixava sem razão. A causa existia e tinha um nome: endometriose. Aos 20 anos fui submetida a uma laparoscopia, que me tirou as dores e me devolveu o controle da minha vida. Tudo mudou então. Menos o diagnóstico de infértil. Passados 20 anos, ainda hoje o carrego: tenho 1% de hipótese de engravidar.

Nestas condições, fiz o que achei melhor. Aos 27 anos parei de tomar a pílula, visto considerar a ideia de engravidar inexistente. Passado um mês, estava grávida do meu primeiro filho, o David. E digo primeiro, porque se seguiram o Diogo e o Vasco. Hoje têm 11, 8 e 4 anos.

Tudo mudou com o primeiro choro do David. Se ao descobrir que estava grávida, me senti perdida, quando o vi pela primeira vez, senti-me em pânico. Não tinha feito planos, não sabia se queria ser mãe, nunca tinha pensado nisso. Ali, o mundo mudou. Transformou-se.

Hoje, fazem parte de mim, como uma perna ou um braço. Mais. É como se o meu coração tivesse saltado para fora de mim, dividindo-se em três. Fazem-me ver o mundo de maneira diferente. Inspiram-me. E foi deste amor e desta cumplicidade que, em Dezembro de 2019 nasceu o meu primeiro livro infantil Quando o Mundo perdeu a cor, onde eles são os heróis da história. Um livro cheio de aventura e magia, tal como a própria vida. Onde as crianças reparam que as cores estão a desaparecer do Mundo e são elas que vão salvar os adultos. É o meu testemunho para eles. Para que eles saibam que são mágicos e que mudaram a minha vida, lhe deram mais cor. Porque algumas histórias acabam bem…

A autora escreve sem Acordo Ortográfico