O nome é longo e de pronúncia complexa, mas faz parte da vida de muitas mulheres desde que nasceram. Mesmo sem o saberem até atingirem
uma certa idade são portadoras desta síndrome, que se estima afetar aproximadamente 1 em cada 4500 bebés do sexo feminino. Em Portugal, parte
das mulheres com MRKH já se conhecem entre si e várias já estiveram no gabinete médico de Fernanda Geraldes. Assistente hospitalar graduada de
Ginecologia/Obstetrícia do Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra, co-responsável da Consulta de Ginecologia da Infância e da Adolescência
sediada no Hospital Pediátrico de Coimbra e presidente da Secção de Menopausa da Sociedade Portuguesa de Ginecologia conhece bem a síndrome e
em 11 respostas explica o que é ter MRKH.
O que é a síndrome Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser?
A síndrome de Mayer-Rokitansky-Küster-Hauser, também denominada por aplasia ou agenesia mülleriana, é uma malformação congénita caracterizada por uma aplasia do útero e dos 2/3 superiores da vagina, traduzindo-se na maioria dos casos pela ausência total do útero, havendo num reduzido número de casos um esboço de útero e por uma ausência total ou parcial de vagina. As mulheres com MRKH apresentam ovários normais com produção hormonal normal, bem como o estudo genético normal compatível com um cariótipo feminino normal. O ambiente hormonal não difere das outras raparigas da mesma idade.
Como surge esta síndrome?
Trata-se de uma malformação congénita rara que atinge cerca de 1:4500 recém-nascidos do sexo feminino. É causada por um defeito no desenvolvimento das estruturas müllerianas do embrião por volta das 9 semanas de gestação. Na maioria dos casos é de ocorrência esporádica, embora tenham sido descritos casos familiares. É associada com alguma frequência a malformações renais porque é nessa idade gestacional que o rim também se forma. O que causa essa alteração no desenvolvimento dessas estruturas embrionárias ainda é desconhecido.
Esta síndrome pode ser detetada na infância?
Pode, mas é raro essa situação ocorrer porque não há qualquer sintoma que possa fazer suspeitar dessa síndrome e a observação pormenorizada dos genitais externos femininos, nomeadamente presença ou ausência de vagina, é muitas vezes dificultada pela não colaboração da menina e verdadeiramente não iria modificar nada um diagnóstico tão precoce.
Quais os sintomas mais comuns que apontam para esta síndrome?
Habitualmente o diagnóstico é feito na adolescência por volta dos 15 ou 16 anos quando a menina não menstrua apesar dos caracteres sexuais secundários já estarem presentes (desenvolvimento das mamas e aparecimento dos pelos púbicos) – amenorreia primária. Num pequeno número de casos a impossibilidade de ter relações sexuais poderá ser o sintoma que leva a adolescente a pedir ajuda.
O que implica o diagnóstico de MRKH?
A comunicação do diagnóstico à jovem e à família é um momento muito difícil e delicado. Por um lado, porque a adolescente vai sentir-se diminuída/diferente em relação às suas amigas e isso vais causar-lhe uma tristeza imensa. Por outro a família não compreende de imediato o que se passa, chegando a culpabilizar-se pelo facto e sentindo-se algo perdida em relação ao futuro da filha. É importante uma explicação completa e muito clara do que se passa. É importante dizer-lhes que a filha não vai menstruar nunca, que em relação à sexualidade poderá ser necessário, antes de esta a iniciar, submeter-se a uma intervenção cirúrgica com um pós-operatório complexo, em que poderá ter que usar moldes vaginais diariamente. Mesmo não tendo
necessidade de realização de intervenção cirúrgica (vaginoplastia), poderá ser necessária a utilização de moldes vaginais de forma regular num período próximo ao início da atividade sexual. No entanto, ultrapassadas estas etapas poderá ter uma sexualidade semelhante às raparigas da mesma idade.
Estas mulheres podem ser mães?
O ponto mais difícil de abordar quando se fala em MRKH é a questão da fertilidade. A possibilidade de obter um filho biológico é real já que os ovários produzem ovócitos iguais aos de todas as outras mulheres férteis, no entanto, é necessário um útero para poder “incubar” esse embrião e é aqui que está o problema. O projeto da maternidade de substituição ou correntemente denominada “barriga de aluguer” é uma possibilidade desde que haja legislação para tal e como sabemos em Portugal houve um avanço, mas logo a seguir uma paragem e mesmo um retrocesso quanto a esta matéria.
A outra possibilidade que tem ganho muito terreno nos últimos anos é o transplante de útero que já se faz em vários países, com um número já considerável de bebés nascidos após este procedimento. Ainda é considerada uma cirurgia experimental, mas tem havido investimento e progressão na técnica. A maioria dos transplantes são de dadoras vivas, mas também de dadoras mortas, mas em menor quantidade, mas já com êxito em um caso. Estão contabilizados 11 bebés nascidos após transplante uterino. O hospital a que pertenço, o Centro Hospitalar da Universidade de Coimbra deu os primeiros passos para tornar esse projeto uma realidade em Portugal, mas neste momento está parado.
O processo de adoção é algo que fica sempre em cima da mesa, sendo uma realidade com êxito na maioria das mulheres que frequenta a minha consulta, sobretudo nas que têm mais de 35 anos e relações estáveis.
Existem vários tipos de MRKH?
Existem dois tipos: a Síndrome de MRKH tipo 1 ou forma típica e o tipo 2 ou forma atípica. A forma típica, em que existe uma aplasia uterovaginal isolada é caracterizada pela presença de remanescentes müllerianos simétricos e trompas normais; apenas a parte caudal dos canais de Muller – útero e 2/3 superiores da vagina – é afetada. A forma atípica para além da ausência total ou parcial do útero e vagina apresenta outras malformações associadas – as mais frequentes são as malformações renais (agenesia renal, hipoplasia ou ectopia renal, rim em ferradura – presentes em 40-60% dos casos), anomalias esqueléticas (escoliose, fusão vertebral e anomalia de Klippel-Feil em 20% das doentes) e, mais raramente, perturbações auditivas e malformações cardíacas. A associação de MURCS (Müllerian duct aplasia, Unilateral Renal aplasia, Cervicothoracic Somite dysplasia) é a forma mais grave deste espectro de alterações.
Existem portadoras de MRKH que podem ser afetadas de diferentes formas?
Mesmo na forma típica que é caracterizada por ausência total ou parcial do útero e vagina, as mulheres não são afetadas da mesma forma já que, no que diz respeito à vagina, há mulheres que não têm aplasia total da vagina não necessitando de qualquer cirurgia. Num pequeno número de casos que têm apenas uma aplasia vaginal discreta podem iniciar a sua atividade sexual sem qualquer constrangimento, não necessitando de qualquer procedimento adicional. No que diz respeito à forma atípica estão associadas outras malformações, nomeadamente renais, as mais frequentes, em graus diversos. A associação de MURCS é a forma com alterações mais graves.
Quais as repostas da medicina em relação às mulheres com MRKH?
A aposta tem que ser sobretudo a dois níveis. Um deles é possibilitar uma sexualidade satisfatória, já que há que ter em conta que num número elevado de casos poderá haver necessidade de uma intervenção cirúrgica (vaginoplastia) quando há ausência total da vagina, ou nos outros casos (ausência parcial) incentivar o uso de moldes/dilatadores vaginais que ao corrigir este problema anatómico possibilite uma sexualidade igual a todas as outras mulheres. Num segundo nível falamos em desejo de engravidar e aí apostar na transplantação uterina associada a técnicas de procriação medicamente assistida. A sociedade também pode e deve envolver-se no que diz respeito à legislação adequada sobre a gestação de substituição e facilitar o processo de adoção por parte destes casais. O apoio psicológico e o estar sempre presente para esclarecer e ajudar por parte da equipa médica também é muito importante.
A síndrome interfere na vida sexual das mulheres portadoras de MRKH?
Claro que interfere, porque contrariamente às outras mulheres que não são portadoras desta síndrome, na maior parte dos casos não podem iniciar a vida sexual quando desejam, necessitando algumas vezes de uma intervenção cirúrgica prévia (vaginoplastia) associada ao uso de moldes vaginais e muitas vezes à necessidade de uso de dilatadores/moldes vaginais isoladamente durante um período variável antes do início da atividade sexual. Resolvida esta questão anatómica, e também todo o trauma psicológico inerente, podem ter uma sexualidade muito satisfatória. Tenho na minha casuística essa experiência.
Fernanda Geraldes, ginecologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (artigo publicado inicialmente na edição de Junho de 2019 da +Fertilidade)