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12 Abr. 2024

“Temos ainda uma parte da comunidade médica presa a ideias perpetuadas de que ter dores é normal”

Estima-se que 350 mil mulheres em Portugal sofram desta doença e Susana Fonseca é uma delas. Fundadora e presidente da MulherEndo, a Associação Portuguesa de Apoio a Mulheres com Endometriose, conhece na primeira pessoa sintomas, dificuldades e barreiras quando se está perante uma doença que pode levar oito anos a diagnosticar, cuja sintomatologia é tantas vezes desvalorizada e que ainda necessita de um trabalho de sensibilização e informação junto da comunidade médica e da sociedade. À +Fertilidade Magazine, Susana Fonseca diz que os passos para melhorar já começaram a ser dados e que são reforçados a cada iniciativa da MulherEndo.

+Fertilidade Magazine: Como é lidar com a endometriose, uma doença que pode debilitar a qualidade de vida da mulher?

Susana Fonseca: Viver com uma doença como a endometriose não é algo linear ao longo do tempo. Quando ainda não há um diagnóstico efetivo, para além de sintomas que não têm um nome, há uma ausência de tratamento e, em muitos casos, isso causa um impacto gritante a nível físico e emocional. Quando as doentes já têm um diagnóstico efetivado, há fases em que quase é possível esquecer que temos a patologia, mas há outros momentos em que a sintomatologia se faz sentir de forma exuberante e nos impede de realizar as tarefas mais básicas do dia a dia.

Gosto sempre de ressalvar que o importante é, após o diagnóstico, conhecer a doença o melhor possível e perceber que, a par da medicina convencional, há outras áreas de extrema importância que nos permitem melhorar o nosso dia a dia, nomeadamente a Nutrição, a Fisioterapia do Pavimento Pélvico e a Psicologia. Cada doente é única e, por isso, as suas necessidades também são individuais. Quando conseguimos encontrar um ponto de equilíbrio e estabilidade física no controlo da doença, é possível melhorar muito a nossa qualidade de vida.

+Fertilidade Magazine: Existe consciência sobre a existência da doença, mesmo nas Unidades de Saúde Familiar, ou acha que ainda é uma doença negligenciada, difícil de diagnosticar e de referenciar entre médicos?

Susana Fonseca: Cada vez há mais profissionais de saúde informados, acreditamos que também por todo o trabalho que temos vindo a desenvolver nos últimos dez anos, em diversos canais de comunicação, mas sabemos que há ainda um caminho longo a percorrer. O desconhecimento e desvalorização da sintomatologia culminam na dificuldade de obtenção de um diagnóstico, que poderia ser iniciado nas Unidades de Saúde Familiar. Para o combater, temos procurado desenvolver sessões de sensibilização nas unidades de saúde, mas de uma forma ainda muito residual, por falta de abertura das mesmas para a temática. Sabemos ainda que os constrangimentos atuais vividos no que diz respeito ao Serviço Nacional de Saúde também não ajudam numa patologia que, ao ser ainda desconhecida, acaba por ficar para trás quando há tantas outras mais conhecidas pela sociedade em geral e pela comunidade médica em particular.

+Fertilidade Magazine: Quais são as principais dificuldades que as pacientes sentem e fazem chegar à MulherEndo?

Susana Fonseca: Uma primeira grande dificuldade é encontrar um médico que as ouça e valorize as suas queixas, levando a atrasos de anos na obtenção de um diagnóstico e consequente ajuda. Temos ainda uma parte da comunidade médica presa a ideias perpetuadas de que ter dores é normal, levando à prescrição generalizada da pílula ou mesmo de uma gravidez, como se fossem a solução, sem procurarem uma causa, sem considerarem que ter dores incapacitantes não é normal e que este tipo de dor é um sinal de alerta.

Depois, sem dúvida que outra dificuldade muito prevalente é a falta de acesso a um médico diferenciado, não só por serem poucos num país onde cerca de 350 mil mulheres terão a patologia, como pelo facto de a grande maioria se concentrar no sistema privado de saúde, ficando este acesso vedado a quem não tenha um seguro de saúde. É uma doença que exige consultas regulares, exames, como ecografia pélvica, ressonância magnética, colonoscopia e outros, e possíveis cirurgias, para além de todas as áreas multidisciplinares necessárias no tratamento, pelo que os gastos com as mesmas são tremendamente elevados e não estão acessíveis a uma grande parte da população.

+Fertilidade Magazine: É possível identificar melhorias nos cuidados e aconselhamento médicos e na empatia da sociedade para quem sofre da doença?

Susana Fonseca: Por estar mais informada e mais atenta à existência da patologia e das suas consequências notamos que, com o passar dos anos, há uma maior empatia, tanto de profissionais de saúde como da sociedade em geral, para com as doentes. Contudo, sabemos que há ainda um longo caminho a percorrer neste sentido!

+Fertilidade Magazine: Que aposta está a ser feita pela MulherEndo para aumentar a literacia sobre a doença? Que outros projetos estão previstos para breve por parte da associação?

Susana Fonseca: Temos alguns projetos no terreno que vão ao encontro desta perspetiva de potenciar a literacia, algo que sabemos ser fundamental, porque uma sociedade mais informada é mais ativa na procura de ajuda e de respostas. Assim, desde sessões de sensibilização que desenvolvemos regularmente em escolas, universidades, empresas várias, organismos como bibliotecas e ainda Unidades de Saúde Familiar, ministradas por uma equipa de formadoras devidamente certificadas, à nossa Masterclass, desenvolvida a pensar nas pacientes e onde, no decorrer de várias sessões, passamos conteúdos informativos vários, um e-book sobre a doença e também dicas de como viver melhor com a mesma. Paralelamente, desenvolvemos mensalmente sessões online para as nossas associadas, com conteúdos pertinentes e com a participação de profissionais de áreas variadas, desde ginecologistas diferenciados, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos e outros, como medicina tradicional chinesa, terapeutas sexuais, etc.

A participação em diversos canais de comunicação (redes sociais, podcasts, participação em programas televisivos e artigos para revistas e jornais) é também uma forma de passarmos a mensagem e de chegarmos a um público mais generalizado que importa informar, assim como a realização da nossa EndoMarcha, um evento anual e de cariz internacional, que congrega a participação de pacientes, famílias, profissionais, num dia que se pretende de muita partilha, mas também de sensibilização. Este ano, optámos por fazer em moldes diferentes dos habituais, exatamente porque quisemos apostar num dia de informação para que cada paciente saia mais rica e mais consciente do caminho a seguir.

Para o futuro temos preparados alguns projetos dos quais esperamos poder falar muito em breve, envolvendo decisores políticos e dando, assim, continuação ao trabalho iniciado em 2022 com a nossa Petição Pública para a criação de uma Estratégia Nacional para a Endometriose e Adenomiose. A par de uma sociedade mais informada, precisamos de um programa curricular nos cursos de Medicina atualizado, e de respostas adequadas no Serviço Nacional de Saúde e será para isso que trabalharemos futuramente.

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