Testemunho

20 Mar. 2025

Às tantas, somos tantos…

Fotografia de Elisabete e Ricardo

Elisabete e Ricardo

Ainda hoje me lembro do que senti quando soubemos do diagnóstico. Como tantos outros casais, desejávamos muito ter filhos, mas havia sempre algo que nos fazia adiar esse sonho. Ou porque não era a altura certa no trabalho, ou porque não era a altura certa a nível financeiro, ou porque não era a altura certa por motivos que hoje em dia, olhando para trás, não eram de todo importantes, muito menos o suficiente para adiar um sonho destes, só que na altura fazia sentido. Contudo, nunca se pensa que pode haver outro fator que não nos passa pela cabeça e que não conseguimos controlar. Nós nunca pensámos que pudesse haver outro motivo, esse sim muito real, que nos fizesse adiar o sonho de sermos pais. Mas passado um ano de tentativas, resolvemos fazer exames, por descargo de consciência. Eu já os havia feito, pois a minha mãe demorou 17 anos para engravidar, fez 14 de tratamentos e eu, desde muito cedo, tive presente a importância de irmos ao ginecologista ou, neste caso, ao médico de família que sempre me acompanhou nas consultas de planeamento. Contudo, erradamente, este cuidado a nível de exames pré-natais costuma ser imputado à mulher, o homem só os faz quando a gravidez tarda em aparecer.

Acabámos a descobrir, numa madrugada em que decidimos abrir os resultados, no meio de uma conversa banal às 2h da manhã, que havia uma azoospermia. Assim de caras, era esta palavra que tínhamos no resultado dos exames. Na verdade, viemos a saber que era uma oligospermia severa, mas, nesse momento, ficámos em choque, o chão saiu dos nossos pés, parecia que estávamos a viver uma realidade paralela, uma realidade só nossa, onde não havia mais ninguém. Completamente sozinhos e desesperados.

Chorámos muito, ligámos a amigos próximos e a dor parecia não ter fim. Então e agora? E recorremos a quem? E quem nos pode ajudar agora, neste momento de sufoco? Existe alguma linha SOS desespero? E nunca vamos conseguir ter filhos? E os nossos sonhos? E a convicção de que teríamos sempre filhos, mas afinal podemos não vir a ter? E precisamos de tratamentos? E o que isso implica? E senão resultar? Foi muito difícil, mas se aqui estamos a testemunhar é para demonstrar que não, não estamos sozinhos. Nunca. Parece. Parece que somos os únicos, que não há mais ninguém, que corre sempre tudo às mil maravilhas com toda a gente, mas não é verdade. E, se alguém estiver a ler isto, não estão sozinhos na vossa dor. E existe apoio, existe muita gente a passar pelo mesmo, simplesmente não se falava disto a não ser quando acontece. E quando falamos com pessoas próximas elas conhecem sempre um amigo do amigo que passou pelo mesmo. E outro familiar de outro amigo também. E outro amigo do colega também. E, às tantas, somos tantos… Por isso, é importante desmistificar certos assuntos, nem todas as pessoas “estalam” os dedos e engravidam. Na verdade, à nossa volta apercebi-me que são muitas mais as pessoas que têm dificuldades do que as que não tiveram. Mas como só vemos a parte da gravidez, parece-nos que é fácil.

No nosso caso, acabámos a inscrever-nos num hospital público ao mesmo tempo que íamos fazendo o que nos era possível com o meu ginecologista. Começámos por ir à consulta de Apoio à Fertilidade e a ser seguidos numa clínica privada. Foi um trabalho de equipa e de aceitação. Ainda conseguimos algumas amostras com baixíssima contagem e tentámos fazer uma FIV. Porém, não funcionou. Entretanto tivemos COVID e uma das sequelas foi uma inflamação testicular que resultou em oligospermia total, ou azoospermia que nunca voltou a recuperar. Então percebemos que o processo iria ser muito difícil e, requeria, acima de tudo perceber o que fazia sentido. O tempo de espera para o nosso caso era de três anos. Não existem muitos dadores no banco público e a pandemia veio agravar essa realidade.

Começámos a tentar juntar dinheiro e a ver o que fazia sentido a mim como mulher, ao Ricardo como homem e a nós como casal. E, aos poucos, começou a vir a aceitação do que estava a acontecer, aceitação de que primeiro amamo-nos como casal e daí o desejo de prolongar esse amor com o aumento da família. Aceitação de que, para isso, tínhamos de lutar, tinha de passar por mais tratamentos e aceitação de que poderia nunca acontecer e aceitação de que para tentar teríamos de recorrer a um dador. Mas, então, não seria biologicamente nosso. E as expectativas? E as pessoas à volta? E, foi aí que percebemos que seria sempre nosso. Sempre. Porque só podia acontecer se o desejássemos muito, se lutássemos por ele, se o desejássemos acima de tudo. Se assim não fosse ele também não existiria, por isso, que parvoíce, seria sempre nosso. Mas, calma aí… Há muitos anos nem sequer havia essa hipótese. Nem sequer havia dadores. Então começámos a ver o copo meio cheio e a tentar seguir um caminho.

Após a primeira FIV – ainda com a nossa amostra recolhida antes de termos COVID – juntámos subsídios de férias e tentámos duas inseminações com amostra de dador. Iniciámos ainda um terceiro tratamento onde os meus ovários não responderam, pelo que não chegámos a avançar. A espera, era algo que me corroía a todos os níveis. Era mesmo muito difícil lidar com o espaço entre consultas, com a espera por resultados, com tudo o que fazia com que as coisas não acontecessem “para ontem”. Foi difícil também de lidar com o mundo à nossa volta, estar bem no trabalho, com a família, via gestantes em todo o lado e até comecei a ficar sensível a gravidezes de figuras públicas. Doía muito. Foi essencial ter apoio psicológico para garantir que a saúde mental não se perdia. Cada resultado negativo tinha um impacto brutal em nós. Foi aí que conhecemos a APF, por desespero de procurar apoios e pessoas na mesma situação e percebi que há uma rede, só temos de a procurar e cabe-nos a nós também divulgar, para ajudar a que outras pessoas não passem pelo mesmo sentimento de solidão.

Finalmente acabámos a fazer uma FIV com amostra de dador, tratamento esse que seria a nossa última tentativa pois não havia espaço psicológico, nem monetário para mais. O meu útero e os meus ovários responderam, o ciclo parecia alinhado e acabámos a conseguir a nossa beta HCG positiva. Conseguimos engravidar. Foi uma sensação indescritível de junção de nervos, com ansiedade, com o chão a fugir dos pés, mas, desta vez, era por um sonho a ser concretizado. Engraçado, achámos que quando engravidássemos iríamos respirar de alívio, mas percebemos que, devido a tudo, acaba a ser um processo muito cauteloso também. Nada está garantido, de todo. Mas é a materialização de um sonho, de ver que, de algum modo, pode ser possível. Fizemos transferência de dois embriões, mas infelizmente, perdemos um. Conseguimos seguir em frente com a gravidez apesar de ter sido um processo tumultuoso em que a minha placenta não nutria eficientemente o bebé e começámos a ser seguidos no Diagnóstico Pré-Natal da Maternidade Alfredo da Costa. Foi muito difícil, deparámo-nos com uma restrição de crescimento severa pelas 22 semanas, fizemos muitos exames para descartar displasias esqueléticas e outras patologias e cada semana era uma vitória.

O nosso bebé acabou por nascer de termo, em março de 2023, esteve internado na unidade de Neonatologia, primeiro nos intensivos e depois nos intermédios até que deixou a incubadora e veio para ao pé de nós e é tão, mas tão amado por todos. Gostávamos mesmo muito de partilhar a nossa história pois, se der força a alguém, já valeu a pena. Gostávamos que ninguém se sentisse sozinho e sem chão como nós nos sentimos. A infertilidade é muito mais comum do que se pensa. Ainda bem que, cada vez mais, se fala deste assunto.

Testemunhos