20 Mar. 2025
Não desisti de mim

Patrícia Lemos
“Patrícia, já és mulher?”. Ano após ano, sempre que mo perguntavam, respondia, constrangida: “Ainda não”. Até que, a três meses de completar 15 anos, chegou finalmente a menarca, imponente e impiedosa. Tornei-me mulher, à luz da sociedade da primeira metade dos anos 90. A menstruação veio e não voltou.
Quando andei de consultório em consultório, em busca da causa da amenorreia, fui diagnosticada com Síndrome de Ovários Poliquísticos (SOP) e hipotiroidismo. Digamos que o meu corpo é uma excelente máquina contracetiva. Não foi um período pautado por sensibilidade na forma de falar por parte dos profissionais de saúde que me acompanharam. Ouvi comentários que classifico como infelizes e desnecessários, como que quando casasse a menstruação começava a ser regular ou com os níveis elevados de testosterona que eu apresentava poderia estar a transformar-me num homenzinho. Havia necessidade? Não passava de uma miúda com uma disfunção hormonal da qual não tinha qualquer culpa.
Vou celebrar daqui a nada 44 anos e, desde então, tenho apenas ciclos artificiais, induzidos por via medicamentosa. Com 15 anos, fui então alertada para o facto de que, se um dia quisesse engravidar, iria necessitar de recorrer à Procriação Medicamente Assistida (PMA). É daquelas coisas que toda a gente espera ouvir nessa idade, certo? Errado! Só queria ser uma adolescente “normal”.
Assim começou a história que me conduziu ao submundo da infertilidade, 17 anos depois.
Fui, desde o início, transparente com o meu marido acerca da possível dificuldade que iríamos ter, caso entendêssemos que faria sentido termos filhos biológicos em conjunto. Quando esse dia chegou, tratei logo de pedir apoio médico especializado. A minha prontidão foi atrasada 7 meses com uma falha administrativa no encaminhamento, que não chegou a ser realizado, assim que o pedi. Ia fazer 32 anos e o longo percurso que desenhámos desde então estendeu-se nos 8 anos e 8 meses seguintes, com direito a outro encaminhamento mal elaborado.
Gosto de números e, fazendo contas a tudo o que vivi nesse período, a magnitude que o envolve faz-me pensar, muitas vezes, como é que aguentei tanto. Juro que não estou a exagerar quando digo que tomei milhares de comprimidos, administrei mais de uma centena de injeções, passei mais de 100 manhãs no hospital, tive 6 tratamentos cancelados, síndrome de hiperestimulação ovárica três vezes, aspiraram-me 69 folículos, foram criopreservados 18 embriões, 14 dos quais transferidos em 9 momentos distintos, engravidei 4 vezes e, para fechar o resultado, não fomos pais.
Antes que questionem se não tentámos encontrar respostas ou experimentei diferentes táticas, é claro que sim! Acho que não é nenhuma barbaridade dizer que deve ser natural procurarmos casos idênticos ao nosso, mas, infelizmente, não encontrei ninguém. Li uma infinidade de estudos, teses, artigos em busca de esperança. Realizei vários exames que não me trouxeram respostas, submeti-me a terapêuticas com combinações distintas, prescritas numa “base empírica”, como me diziam, pois não havia evidências de quem seria o malvado culpado do “não foi desta”.
Cada curta gravidez foi vivida em permanente angústia, porque começava sempre mal. Aprendi que sou exímia a perder filhos. Vivi, durante anos, à mercê de listas de espera e dos momentos em que o telemóvel tocava para saber quando voltava a fazer um tratamento. Houve um período de alguns anos em que a sua frequência ocorria a cada quatro meses. Nessas circunstâncias, não conseguia definir planos, sequer a curto prazo. A minha vida baseava-se no improviso, o lado profissional foi fortemente afetado para estar disponível a comparecer no hospital, sempre que necessário. Deixei de me reconhecer, era tão somente um corpo que cumpria ordens médicas, sem qualquer perspetiva de que todo o sacrifício fosse resultar no sonhado filho.
Fui um dia confrontada por uma amiga com a questão “já estabeleceste um limite?”. Naquele momento, fiquei perturbada com essa interpelação, mas percebi na insónia que se seguiu que, apesar de doloroso, fazia sentido pensar no assunto. Chegara a hora de, em casal, tomarmos essa decisão. Determinámos que aos 40 anos terminaria e avaliámos em que condições. Consultámos mais um médico, esgotámos os embriões que tínhamos e, após a alta do centro de PMA, encerrámos o capítulo. Não estava nos nossos planos recorrer à doação de gâmetas, embriões ou adotar uma criança.
Antes desse episódio da pergunta que deu uma viragem no meu entendimento sobre o percurso, magoava-me muito ler ou ouvir “não desistas”, como se isso fosse sinal de fraqueza ou, então, a pérola, a meu ver, mais cruel: “não se desiste de um filho”. Até que, num dia de julho de 2020, abri o ficheiro com o resultado negativo da última transferência. Libertei as lágrimas que ainda me restavam e fiquei enraivecida de mim mesma durante umas horas, por sentir que era uma falhada. Convenci-me de que chegara realmente a altura de não desistir de mim. Cada mês que passava antes dessa data estava a acabar sistematicamente comigo.
Tentei ao longo dos anos recorrer a diversos mecanismos para me reerguer após cada contrariedade. Dediquei-me à escrita num blogue que criei sobre o meu trajeto (http://seiquechegaras.blogspot.pt), participei em fóruns de discussão, falei sempre abertamente sobre o assunto, colaborei em algumas iniciativas e estudos. Uns meses antes de cortar o cordão umbilical com a PMA percebi que, após o término, precisaria de me dedicar a algo diferente que me desviasse os pensamentos do desgaste sofrido nos anos anteriores. Algumas semanas após o fim, candidatei-me ao ensino superior, licenciei-me novamente e mudei de profissão. Os pensamentos não foram desviados, contrariamente ao que esperava, pelo que acabei por conjugar o luto com as aulas, o trabalho que realizava simultaneamente, exames e todas as outras exigências do curso.
É importante salientar que não tenho nenhum arrependimento em ter parado, assim como de ter persistido durante tantos anos, que me fizeram mais mal que bem. Na minha perspetiva é fundamental estarmos cientes de que as coisas não correm sempre como ambicionamos. Só o facto de ter estabelecido o tal limite já me tirou um peso colossal dos ombros. Desafio quem está a ler este testemunho a realizar o exercício de pensar até onde está verdadeiramente disposto a avançar para tentar materializar a ideia da maternidade/parentalidade. Mas faça-o de forma realmente consciente e pragmática, ok? Não podemos cair no erro de romantizar que só seremos felizes se tivermos filhos, desvalorizando tantas outras realizações que podem ser alcançadas!
Este texto representa uma ínfima fração do que vivi no âmbito da infertilidade, com um desfecho tão válido como tantos outros partilhados neste e noutros meios.
Entendo ser importante conhecermos diferentes realidades, pois tenho bem presente as vezes que me senti incompreendida, só, desamparada, desesperada, zangada, desiludida, um extraterrestre, carente de um colo, ainda que não fosse físico. Sobre o renascer que sucedeu ao fracasso, posso dizer que me está a trazer paz. Estou bem, de verdade, em fase de descoberta! Ainda recupero de sequelas resultantes das bombas hormonais e de privações a que me sujeitei, na esperança de que um dia trouxessem frutos. Recuso fingir que nada aconteceu, fiz tudo em plena consciência. A forma como evoluiu teve um contributo preponderante para o desenvolvimento da minha identidade. Saliento, no entanto, que, para meu alívio e manutenção da sanidade mental, a tortura terminou.