08 Set. 2025
Abortos de repetição: o fosso entre a evidência científica e o luto

Cláudia Tomás, Ginecologista na Joaquim Chaves Saúde
A definição de abortos de repetição (AR) varia entre sociedades científicas, mas é geralmente aceite a ocorrência de pelo menos dois abortos antes das 24 semanas. Outras definições consideram três perdas antes da viabilidade fetal. Afetam cerca de 1-5% dos casais e a prevalência parece estar a crescer.
As causas incluem idade materna, disfunções endócrinas, anomalias uterinas e cromossómicas, trombofilias, infeções e patologia autoimune. Contudo, estas explicam apenas 50-60% dos casos; nos restantes, a causa é desconhecida. Globalmente, cerca de 11%, 2% e 0,7% das mulheres sofrem 1, 2 e 3 abortos, respetivamente.
A principal causa de aborto são as anomalias cromossómicas, nomeadamente as aneuploidias, presentes em mais de 50% dos abortos do 1º trimestre. A idade materna, refletindo o envelhecimento ovocitário, é o principal fator de risco, com aumento exponencial após os 40 anos. A idade paterna também pode aumentar o risco, embora de forma muito menos expressiva. Não existe intervenção conhecida que previna defeitos genéticos. No contexto de AR, pode recorrer-se à biópsia embrionária na Procriação Medicamente Assistida (PMA), embora esta não seja recomendada por rotina e necessite de maior validação.
A obesidade tem sido associada a piores outcomes reprodutivos, tanto em PMA como em gravidezes espontâneas. Como condição inflamatória crónica, pode contribuir para perdas gestacionais por mecanismos imunológicos e stress oxidativo. Os estudos são contraditórios, mas sugerem maior risco de aborto com IMC ≥25 kg/m². A otimização metabólica pré-concecional, incluindo perda de peso gradual, melhora fertilidade e resultados obstétricos. No entanto, em mulheres com mais de 38 anos, o atraso para perder peso pode ser contraproducente, dada a diminuição progressiva da reserva ovárica.
As doenças autoimunes, por mecanismos imunológicos e placentários, também estão associadas a AR. Fatores ambientais (tabaco, álcool, poluentes, stress crónico e dieta pobre) contribuem negativamente para a implantação embrionária por meio de inflamação crónica, stress oxidativo e desequilíbrio hormonal.
No estudo dos AR, existe consenso quanto à avaliação de trombofilias adquiridas, cariótipos, ecografia 3D da cavidade uterina e função tiroideia. A avaliação de fatores imunológicos e da fragmentação do DNA espermático não é ainda recomendada por rotina. Baixos níveis de vitamina D podem estar implicados na disfunção placentar, mas a sua prevalência nos AR e o impacto da suplementação são ainda incertos. Também a investigação da microbiota e o seu papel nos desfechos reprodutivos está em curso, com associação sugerida entre disbiose e AR, embora não só esta relação não é clara como se desconhece a estratégia ideal de abordagem.
Em termos terapêuticos, a aspirina e enoxaparina estão indicadas apenas na síndrome do anticorpo antifosfolipídico, sem benefício comprovado nos AR de causa inexplicada. Já a evidência moderada, apoiada pela guideline da NICE, sugere que a progesterona pode aumentar a taxa de recém-nascidos vivos em mulheres com perdas prévias, com perfil de segurança favorável, embora a sua eficácia não seja consensual. Os defeitos anatómicos como septos uterinos devem ser avaliados individualmente, miomas intracavitários ou pólipos, devem ser removidos na perspetiva de otimizar a cavidade uterina. Também do ponto de vista psicológico, é inegável que estes pacientes não recebem o apoio adequado. O impacto do aborto vai além do evento agudo, afetando a saúde mental e o relacionamento conjugal, pelo que deve ser tido em conta no seguimento clínico.
Apesar de tudo, o prognóstico é globalmente favorável: cerca de 75% das mulheres com AR terão uma gravidez bem-sucedida, e uma proporção significativa das mulheres com abortos inexplicáveis são mulheres saudáveis e sem patologia persistente, ainda que o prognostico piore com a idade materna e com o número de abortos prévios.
De um modo geral, não há nenhuma conduta com relação causa-efeito direta que garanta um recém-nascido vivo. O tema dos AR continua a ser uma das blackbox da medicina da reprodução. No entanto, as condições básicas para a saúde de um modo geral, entre as quais, uma alimentação cuidada, exercício físico, suplementação, sono adequado, evicção de hábitos nocivos e cuidado da saúde mental, podem ser meio caminho andado para otimizar a qualidade dos gâmetas cujos embriões potencialmente mais saudáveis possam implantar num terreno biológico favorável.