04 Jul. 2025
+Fertilidade: uma missão de todos pela sustentabilidade do país
							Estúdio P
Cláudia Vieira define-se ainda hoje como uma privilegiada. Há 14 anos, quando engravidou do terceiro filho, a multinacional onde trabalha como directora de tecnologias de informação ofereceu-lhe um desafio – iria liderar um novo projecto. Poder-se-ia acrescentar que recebeu esta proposta “apesar de estar grávida”, mas Cláudia sentiu que a sua empresa a valorizava, independentemente da sua condição de futura mamã. “Interpretei este gesto como uma oportunidade”, descreveu a também presidente da Associação Portuguesa de Fertilidade (APFertilidade) na abertura do evento do Movimento +Fertilidade, que decorreu no início de Junho, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa.
Poucos anos antes, Cláudia Vieira sentira o mesmo apoio da empresa na sua “longa jornada até à maternidade”, com tratamentos de procriação medicamente assistida, uma perda gestacional às 21 semanas e uma gravidez de gémeas que a forçou a estar em repouso absoluto. “Neste processo tive um privilégio que, infelizmente, poucas pessoas ainda têm: nunca precisei de escolher entre a minha família e a minha carreira”, explicou perante uma audiência de representantes de empresas nacionais e multinacionais chamadas a integrarem este movimento enquanto agentes transformadores. “Estamos a dar voz a um desejo colectivo: começarmos a olhar para Portugal como um país onde é possível ter filhos”, enunciou Cláudia Vieira.
O Movimento +Fertilidade é uma iniciativa da APFertilidade, da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR) e da Ordem dos Médicos, apoiada pela Merck, e procura alertar para a situação potencialmente insustentável para a demografia, a sociedade e a economia portuguesas se não se reverterem as estatísticas da natalidade no país. De acordo com dados oficiais, em 2024, nasceram apenas 84650 mil bebés. E este número é 1,2% menor do que no ano anterior. A taxa de fecundidade é actualmente de 1,44 filhos por mulher, quando a reposição populacional seria garantida com 2,1. Acresce ainda um aumento na idade média do nascimento primeiro filho, agora nos 30,2 anos. “A prevalência da infertilidade tem estado a aumentar. Em 2022, um em cada seis casais de todo o mundo defrontava-se com um problema de infertilidade. Temos de parar para pensar”, alertou o presidente da SPMR, Luís Ferreira Vicente.
“Portugal tem um desafio muito grande pela frente. A renovação geracional não se verifica, porque as pessoas entendem que não têm condições para constituir a família que desejam. Quando chega o momento em que entendem que estão reunidas as condições, já é tarde demais”, acrescentou ainda a presidente da APFertilidade, Cláudia Vieira. Uma posição confirmada por Renato Martins, do Colégio da Subespecialidade da Medicina da Reprodução da Ordem dos Médicos: “O adiamento da parentalidade assume extrema importância, porque sabemos que há um declínio biológico da saúde das mulheres”.
Acesso a terapêuticas e apoio psicológico
A Merck apoia o movimento desde o seu início porque “sabemos que as empresas têm hoje um papel insubstituível para mudar culturas e valores na nossa sociedade. Temos de assumir essa responsabilidade e motivar outras”, descreveu o director-geral, Pedro Moura. A farmacêutica desenvolve investigação na área da medicina de reprodução, “mas este desafio não se esgota em medicamentos e tecnologias de saúde. Exige equidade, alguma empatia, políticas públicas e uma mudança cultural”. A Merck introduziu um plano de apoio às suas pessoas a nível mundial, e que está em funcionamento em Portugal desde 2024. Através dele, atribui-se até 16 mil euros por colaborador para garantir o acesso a medicamentos e outras terapêuticas de preservação da fertilidade, e garante-se apoio psicológico.
Esta é uma ferramenta essencial, na opinião da keynote speaker do evento, Ana Carina Valente: “O apoio psicológico é uma mais-valia”. Para a psicóloga e também professora no ISPA, “as empresas podem ter cada vez mais um papel muito importante no tema da fertilidade porque se eu não tenho, como nas gerações anteriores tinha, a base, a equipa, a aldeia à minha volta, tenho o sítio onde trabalho.”
Boas práticas retêm talento
O Movimento +Fertilidade incentiva as empresas a assinarem uma carta compromisso onde assumem as iniciativas que já têm e quais pretendem criar para promover ambientes mais inclusivos e favoráveis à parentalidade activa e à saúde reprodutiva. A Lush é uma das signatárias. “Não podíamos ficar para trás”, explicou a country manager Carla Nunes durante uma mesa-redonda dedicada ao impacto das boas práticas na retenção de talento nas empresas. Desde 2017 que esta multinacional da área da cosmética instituiu o alargamento da licença parental. Em Portugal, todas as mulheres que tiveram bebés nos últimos anos estenderam para seis meses o tempo passado com os seus recém-nascidos. Também se avalia caso a caso a flexibilidade horária. “Estamos no caminho de trabalharmos para melhorar. A preocupação da Lush é ouvir as necessidades dos trabalhadores”, disse Carla Nunes.
Também a PwC Portugal deu resposta às necessidades das suas colaboradoras quando criou uma sala específica para amamentação. “O nosso produto é o tempo das nossas pessoas e dependemos directamente da sua retenção. Apostamos muito na formação e desenvolvimento dos nossos profissionais”, começou por explicar Alexia Leigh Andrade, human capital manager da consultora. Por esse motivo, “não foi difícil para nós começarmos a introduzir alguns benefícios que fizessem toda a diferença. Foi uma coisa natural: à medida que os colaboradores traziam os seus problemas, fomo-nos adaptando.”
Na NOS, esta preocupação da retenção de talento também é tida em conta. “Estamos num ecossistema de empresas e temos de considerar oferecer condições (licenças da parentalidade alargada, férias extra, modelos flexíveis de trabalho) ou deixamos de ser competitivos”, declarou André Ottone Alves, que sublinhou a relevância do valor tempo: “Podermos ter conciliação entre o que é a vida pessoal e profissional, adaptarmos as jornadas de trabalho, mais disponibilidade física para dedicar à família. Tudo isto são aspectos que nos podem fazer decidir por constituir ou alargar a família”, descreve. O director de People Relations & Diversity deu um exemplo concreto do preço da habitação: um modelo híbrido de trabalho pode permitir a um colaborador viver a dezenas de quilómetros da empresa, pagando menos pela sua casa.
No caso da Merck, além dos benefícios de fertilidade já enunciados, Rita Reis acrescentou a possibilidade de se realizar uma análise que revele o estado da reserva ovárica de cada mulher, por meio da dosagem da hormona anti-Mülleriana. “Um estudo que apoiámos há um ano dizia que 78% dos jovens portugueses não sabiam sequer o que era. É impossível planearem o projecto de parentalidade a prazo” sem este conhecimento, disse a directora de Government e Public Affairs da farmacêutica. E que, acrescentou o médico ginecologista Luís Ferreira Vicente, presidente da SPMR, este movimento +Fertilidade procura também influenciar a literacia em saúde e promover melhores condições de acesso ao diagnóstico e tratamento, que são ainda desiguais no território português. “É uma missão que nos cabe a todos nós, temos que saber qual é o problema que temos pela frente para o poder combater”, sublinhou.
Aqui, as autoridades de saúde têm também um papel, segundo assumiu a enfermeira Dina Oliveira, que representou a directora-geral da Saúde (DGS) neste evento: “Percebemos que não são medidas isoladas que podem resolver esta situação. Tem de ser uma abordagem integrada das políticas públicas e privadas e que envolva todos os sectores da sociedade.”
Para concluir esta tarde de reflexão, uma palavra de esperança de Cláudia Vieira: “Sei por experiência própria que este apoio é possível e traz benefícios reais para todos, colaboradores, empresas e a própria sociedade.”
[estúdio]P • 4 Jul. 2025