01 Nov. 2023
O papel crucial do Médico de Família na promoção da saúde reprodutiva e fertilidade

Rui Miguelote
O papel do médico de família (MF) nas questões relacionadas com a saúde reprodutiva e a fertilidade não tem sido devidamente reconhecido e, consequentemente, tem sido desaproveitado. A sua posição mais próxima do utente e de todo o seu contexto médico, social, profissional e familiar, o seu contacto contínuo e em fases da vida em que a infertilidade ainda não é uma queixa, mas em que os fatores de risco e as condições médicas associadas podem já estar presente, fazem do MF o profissional de saúde com o papel mais importante na prevenção, aconselhamento e orientação nesta área.
Na luta contra o aumento da infertilidade, o MF pode ter um papel central e crucial. Neste artigo aponto alguns dos muitos e importantes contributos que o MF pode ter.
No caso do elemento que frequentemente é responsável pela infertilidade/subfertilidade conjugal, o homem (sim, a infertilidade masculina contribui para cerca de 50% dos casos de infertilidade conjugal e a chamada do elemento masculino ao problema é já um contributo importante!), o MF tem um papel ativo no rastreio ativo e na informação sobre exposições que causam deterioração da função e número dos espermatozoides — como o uso de esteroides anabolizantes (hormonas usadas para aumentar a massa e força muscular), o uso de drogas recreativas como cannabis e a cocaína, a exposição a produtos químicos tóxicos no ambiente de trabalho, como pesticidas e metais pesados, e, embora de menor impacto, o consumo de tabaco e o uso excessivo de álcool. Estes fatores podem contribuir para o flagelo da deterioração dos parâmetros do espermograma a que se tem assistido nos últimos 50 anos.
No caso feminino, salientaria três contributos importantes, começando pela literacia para o impacto da idade da mulher na fertilidade. Ao contrário do homem, os ovários não produzem novos ovócitos ao longo da vida e isto tem duas implicações: os ovócitos que vão sendo gastos não são repostos e a qualidade deles vai-se deteriorando (alterações genéticas) com o passar dos anos. Aos 30 anos, a probabilidade de conceber a cada ciclo menstrual é de cerca de 20%, enquanto aos 40 anos cai para 5%. Mas não é só a fecundidade que diminui, a probabilidade de a gravidez terminar num aborto do primeiro trimestre sobe de cerca de 15% aos 30 anos para mais de 50% aos 40 anos.
Importa ainda desmistificar que este pior desempenho reprodutivo das mulheres mais velhas pode ser corrigido/alterado pelos tratamentos de Procriação Medicamente Assistida (PMA). A taxa de gravidez por ciclo de FIV/ICSI com uso dos ovócitos da utente é de cerca de 50% aos 25 anos e de menos de 10% acima dos 42 anos.
As frequentes notícias nas revistas cor-de-rosa de mulheres famosas que engravidam em idades avançadas não facilita o nosso trabalho, mas urge esclarecer que a grande maioria delas engravidaram com recurso a tratamentos de PMA com doação de ovócitos de mulheres jovens. Contudo, esta possibilidade não é uma opção válida para todos os casais/mulheres por levantar questões emocionais, psicológicas e morais importantes.
Importa ainda salientar o contributo do MF na promoção da literacia para os conceitos de ciclo menstrual, de período fértil, de dia de ovulação e que, frequentemente, ainda são desconhecidos ou erroneamente compreendidos. E também nos aconselhamentos para aumentar a fecundidade natural dos casais.
Por fim, referir a deteção de condições médicas que devem merecer precocemente uma investigação e possível encaminhamento para outras especialidades por estarem associadas a risco de infertilidade.
Como, por exemplo, os sintomas de dor menstrual ou de dor na relação sexual que estão frequentemente associadas a situações de endometriose ou adenomiose e que ainda são, frequentemente, desvalorizados e considerados como sintomas “normais”. Ou as irregularidades menstruais que não devem ser simplesmente “tratadas” com um contracetivo oral combinado, “pílula”, mas que devem ser alvo de uma investigação que permita determinar a causa subjacente. Neste contexto, a causa ipotalâmica funcional (associada ao excesso de exercício físico, baixo peso ou stress psicológico) é particularmente subdiagnosticada, o que impede a correção das causas subjacentes, a qual traria ganhos importantes para além da fertilidade.
A abordagem holística e o relacionamento de longo prazo conferem ao MF um papel fulcral na prevenção e identificação precoce dos problemas de infertilidade e são, posteriormente, o apoio contínuo e o cuidado coordenado na ajuda desses casais a enfrentar os desafios emocionais e físicos associados à infertilidade e ao seu tratamento.
Este texto de opinião surge da colaboração entre Rui Miguelote, Professor na Universidade do Minho e Médico de Ginecologia Obstetrícia, e a Associação Portuguesa de Fertilidade.