Tal como na doação de gâmetas — ovócitos ou espermatozóides —, a doação de embriões ocorre sob sigilo, ou seja, quem doa não saberá quem receberá os seus embriões e as pessoas beneficiárias dessa doação não saberão a identidade de quem doou. Mantém-se o regime de não-anonimato, o que significa que a pessoa nascida desse processo, e apenas ela, pode, ao completar 18 anos e querendo, obter informações genéticas e de identificação civil de quem doou.
Estes embriões, criopreservados por um período de 3 a 6 anos, podem, findo o primeiro prazo de 3 anos, ser cedidos para investigação, serem destruídos, ou serem doados a pessoas beneficiárias de tratamentos de PMA — decisão que depende sempre do consentimento escrito das pessoas titulares dos embriões. O que daqui focamos é o facto de findos 3 anos de criopreservação, os embriões poderem ser doados a outros casais/mulheres solteiras, nos termos do artigo 25.º/1 e 3 da Lei da Procriação Medicamente Assistida – Lei n.º 32/2006, de 26 de julho.
Num encontro recente com a clínica Ginemed Portugal, sita em Lisboa, foram levantadas duas questões: porquê só poder doar depois de 3 anos; e o que acontece se o casal se separar e uma das pessoas quiser utilizar o/s embrião/ões.
De acordo com o artigo 25.º/3 da Lei da Procriação Medicamente Assistida, a doação dos embriões só pode ocorrer findo o prazo de 3 anos sobre a criopreservação e decisão de não utilização dos mesmos. Num primeiro momento, pensa-se que a imposição de um prazo de 3 anos gera obstáculos temporais e coloca várias vidas em suspenso, podendo até impedir a possibilidade de aceder às técnicas de PMA.
A legislação, termos gerais, é um conjunto de regras que se destina a regular a sociedade tendo em conta as necessidades da população, princípios, valores e cultura. Contudo, as exceções não deixam de ser casos reais e, muitas vezes — como esta —, a rigidez da legislação não abrange todas as pessoas, como é o caso de casais de homens. No entanto, e como advogadas, pensamos como um jogo de xadrez e como faríamos estando do outro lado do tabuleiro. E a pergunta inevitável que levantámos foi: porquê 3 anos?
A reprodução é um tema altamente sensível e complexo que depende de muitas variáveis: desejos pessoais, desejos familiares, possibilidades financeiras, expectativas, sonhos. A preservação de embriões implica custos e, sobretudo, uma informação que está lá sempre em pano de fundo: tenho embriões meus preservados. O que fazer?
Segundo e exemplo: duas mulheres separam-se e uma delas quer usar um embrião preservado. A outra mulher consente na qualidade de titular e está mais do que claro entre ambas que a criança nascida é da família da agora mãe sozinha (ou não) e não da outra titular e, assim, a que consentiu não estará de qualquer forma relacionada com a criança que nascerá. Mesmo perante este acordo de cavalheiras, a lei, como está de momento, obriga a que a criança seja registada em nome das duas titulares. Relembrando o nosso artigo anterior, um dos documentos a apresentar na altura do registo da criança é a declaração da clínica que realizou a técnica de PMA e eventual consentimento. Ora, apresentando o consentimento assinado pela outra titular, mas que não quer ser Mãe, o Instituto de Registos e Notariado, seguindo a lei, tem de registar a criança em nome das duas. Solução na prática? De momento, omitir, e fazer uma viagem ao passado quando não era permitido a mulheres solteiras engravidarem e, quando engravidavam e registavam, diziam que não sabiam quem era o pai. A lei tem de mudar.
As pessoas legisladoras terão tido boas intenções com a fixação deste prazo, na medida em que, não sendo viável, a longo prazo, a manutenção de todos os embriões excedentários de todos os indivíduos que recorrem a técnicas de PMA, eventualmente teria de ser estabelecido um limite temporal.
Poder-se-á sempre questionar, antes de mais, o motivo pelo qual o legislador determinou um prazo fixo e obrigatório de 3 anos para que se pudesse proceder à doação de embriões. Isto porque se existem indivíduos que não pretendem/não conseguem decidir que destino dar aos seus embriões e, portanto, o “empurrão temporal da lei” pode ser útil na determinação do destino dos inúmeros embriões sem projeto parental, a verdade é que também existem muitos doadores e beneficiários cuja decisão é célere e firmemente tomada e que veem os seus propósitos, desejos e objetivos adiados sem uma justificação suficientemente forte por parte da legislação portuguesa.
Além disso, a Lei da Procriação Medicamente Assistida não acautela suficientemente situações semelhantes às dos exemplos acima apresentados: os timings burocráticos e “no papel” são uma coisa, os timings vivenciados por pessoais reais, em situações reais de infertilidade, são outra. O relógio não para de contar para uma doadora de 48 anos.
A PMA é um processo extremamente desafiante tanto a nível físico, como a nível emocional, e não é totalmente impensável que um casal doador, perante dificuldades no decorrer do seu processo, decida de forma algo súbita proceder à doação dos seus embriões. Um prazo de 3 anos possibilita o afastamento deste tipo de situações, funcionando quase como que um “período de reflexão”.
No entanto, até que ponto será eticamente justo definir o momento oportuno para cada doação de embriões? “Cada caso é um caso” e, perante situações delicadas e tão específicas como as da PMA, em que o timing é tudo, onde por vezes meses podem fazer a diferença e acabar com o sonho de uma vida, onde se investe tempo, sangue, suor e lágrimas, tempo e saúde mental, poderia a legisladora ter acautelado a situação de uma outra forma, tendo em conta a especificidade e nuances de certas conjunturas.
Há que compatibilizar o ordenamento jurídico português com a vida no terreno. O sistema tem de ser mais rápido e acompanhar a evolução da sociedade — como, por exemplo, o sistema anglo-saxónico, que podemos deixar para outro artigo.
Este texto de opinião surge da colaboração entre Rita Duarte, advogada em Rosário Duarte Advogados, e a Associação Portuguesa de Fertilidade.
Jornal de Notícias • 8 Jan. 2024
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